quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Os dois irmãos e o ouro



Em tempos antigos, dois irmãos moravam perto de Jerusalém, Afanássi, o mais velho, e Johan, o mais jovem. Moravam numa montanha, não distante da cidade, e se alimentavam do que as pessoas lhes davam. Os irmãos passavam o dia inteiro no trabalho. Não trabalhavam para si, mas para os pobres. Onde houvesse gente oprimida pelo trabalho, onde houvesse doentes, órfãos e viúvas, para lá iam os irmãos, trabalhavam e iam embora, sem receber pagamento. Assim, os irmãos passavam a semana inteira separados e só se reencontravam no sábado à tarde ao voltar para casa. Só no domingo ficavam em casa, rezavam e conversavam. E o anjo do Senhor descia ao encontro deles e os abençoava. Na segunda-feira, separavam-se e cada um ia para um lado. Assim viveram muitos anos e toda semana o anjo do Senhor descia e os abençoava.
Numa segunda-feira, quando os irmãos saíram para trabalhar e já tinham ido para direções diferentes, o mais velho, Afanássi, teve pena de se afastar do irmão querido, parou e olhou para trás. Johan caminhava de cabeça baixa e não olhou para trás. Mas de repente Johan também parou e, como se tivesse visto alguma coisa, pôs-se a olhar fixamente naquela direção, usando a mão para proteger os olhos da luz do sol. Em seguida se aproximou daquilo que tinha visto, depois pulou para o lado e, sem olhar para trás, correu montanha abaixo e montanha acima, para longe daquele lugar, como se uma fera corresse atrás dele. Afanássi ficou espantado e caminhou para aquele lugar a fim de saber o que havia deixado o irmão tão assustado. Chegou perto e viu algo brilhar no sol. Chegou mais perto − no capim, como se tivesse sido derramado de um saco, havia um montinho de ouro, dividido em dois. E Afanássi ficou ainda mais admirado, com o ouro e com o pulo do irmão.
“Por que ficou assustado e por que fugiu?”, pensou Afanássi. “Não há pecado no ouro, há pecado no homem. Com o ouro, se pode fazer o mal e o bem. Quantos órfãos e quantas viúvas se podem alimentar, quantos nus se podem vestir, quantos aleijados e doentes se podem curar com esse ouro! Ajudamos as pessoas, mas nossa ajuda é pouca, pois nossa força é pouca, mas com este ouro podemos ajudar mais gente.” Afanássi pensava assim e queria dizer tudo isso para o irmão; mas Johan já estava fora do alcance de sua voz e só podia ser visto lá na outra montanha, já do tamanho de uma formiga.
E Afanássi tirou sua capa, juntou nela todo o ouro que conseguia carregar, pendurou no ombro e levou para a cidade. Chegou a uma hospedaria, deu o ouro para a dona da hospedaria e foi buscar o resto. Quando trouxe todo o ouro, procurou os comerciantes, comprou terras na cidade, comprou pedras, madeira, contra tou trabalhadores e começou a construir três prédios. E Afanássi ficou três meses na cidade, construiu três prédios; um asilo para órfãos e viúvas, um hospital para aleijados e mutilados, um abrigo para mendigos e peregrinos. E Afanássi achou três velhos piedosos e a um entregou o asilo, a outro, o hospital, e ao terceiro, o abrigo de peregrinos. E ainda sobraram três mil moedas de ouro com Afanássi. Então ele entregou mil moedas a cada velho para distribuir para os pobres. E começou a encher os três prédios de gente e as pessoas começaram a elogiar Afanássi por tudo aquilo que estava fazendo. Afanássi alegrou-se com isso, a tal ponto que não quis mais sair da cidade. Mas Afanássi amava o irmão e, depois de despedir-se do povo, sem que restasse consigo mais nenhuma moeda, com a mesma roupa velha em que tinha chegado, exatamente como antes, voltou para sua morada.
Afanássi aproximou-se de sua morada e pensou: “O irmão julgou errado quando se afastou do ouro com um pulo e fugiu. O que fiz não foi melhor?”.
E assim que Afanássi pensou nisso, viu de repente que no caminho estava aquele mesmo anjo que os abençoava e agora olhava para ele com ar terrível. Afanássi ficou aturdido e apenas disse:
− O que foi, Senhor?
E o anjo abriu os lábios e disse:
− Vá embora. Você não é digno de viver com seu irmão. Um pulo do seu irmão vale mais do que as coisas que você fez com seu ouro.
E Afanássi começou a dizer quantos pobres e peregrinos ele havia alimentado, quantos órfãos havia socorrido. E o anjo respondeu:
− Foi o diabo que pôs o ouro lá para tentar você e que lhe ensinou essas palavras.
E então a consciência de Afanássi o denunciou e ele reconheceu que não fez suas boas ações por Deus, e começou a chorar e se arrependeu.
Então o anjo abriu caminho para ele, recuando para o lado da estrada, onde Johan já estava à espera do irmão. E desde então Afanássi não se rendeu à tentação do diabo, que havia deixado o ouro ali, e entendeu que não era com o ouro, mas apenas com o trabalho que se podia servir a Deus e às pessoas.
E os irmãos voltaram a viver como antes.
Contem um conto / companhia das letras
Você perdeu, capitão!, de Isaac Bábel
Tradução: Rubens Figueiredo

O navio Halifax chegou ao porto de Odessa. Veio de Londres para levar trigo russo.
No dia 27 de janeiro, dia do enterro de Lênin, a tripulação de cor do navio — três chineses, dois negros e um malaio — chamou o capitão no convés. Na cidade, bandas de música trovejavam e a nevasca uivava.
— Capitão O’Nearn — falaram os negros. — Hoje não tem carregamento, deixe a gente ir para a cidade e ficar até amanhã.
— Vão permanecer em seus postos — respondeu O’Nearn. — A tempestade tem nove graus e está ficando mais forte: perto de Sanjeika, o Beaconsfield ficou preso no gelo, o barômetro mostra uma coisa que era melhor que não mostrasse. Num tempo desses, a tripulação tem de ficar a bordo. Mantenham seus postos.
Depois de falar, o capitão O’Nearn foi à sua cabine se encontrar com o imediato. Riram entre si, fumaram charutos e apontaram com o dedo para a cidade, onde a nevasca uivava e as bandas de música trovejavam, numa tristeza incontrolável.
Os dois negros e os três chineses vagavam à toa pelo convés. Bafejavam nas palmas das mãos enregeladas, batiam no chão as solas de borracha das botas e espiavam pela porta entreaberta da cabine do capitão. De lá, o veludo dos divãs, o conhaque aquecido e a fumaça do tabaco refinado vazavam para a tempestade de nove graus.
— Contramestre! — gritou O’Nearn, ao ver os marinheiros. — O convés não é um bulevar, enxote esses moleques para o porão.
— Sim, senhor — respondeu o contramestre, uma coluna de carne vermelha coberta de cabelo vermelho. — Sim, senhor. — E agarrou pelo colarinho o malaio desgrenhado.
Virou-o para a borda que dava para o mar aberto e jogou-o por uma escada de cordas. O malaio desceu aos trambolhões e saiu correndo pelo gelo. Os três chineses e os dois negros correram atrás.
— O senhor enxotou o pessoal para o porão? — perguntou o capitão de dentro da cabine, com o conhaque aquecido e a fumaça do tabaco refinado.
— Já enxotei, senhor — respondeu o contramestre, a coluna de carne vermelha, e se pôs de pé junto à escada de cordas, como uma sentinela na tempestade.
O vento soprava do mar — nove graus são como nove tiros de canhão disparados pelas baterias congeladas do mar. A neve branca rugia com raiva sobre os blocos de gelo. E, por cima das ondas petrificadas, cinco vírgulas retorcidas, esquecidas de si mesmas, de rostos carbonizados e paletós esvoaçantes, planaram rumo à margem, na direção das docas. Esfolando as mãos, se empoleiraram na margem, escalando estacas cobertas de gelo, correram para o porto e foram voando para a cidade, que sacudia sob o vendaval.
Um destacamento de estivadores com bandeiras negras andava na praça, rumo ao local onde ia ficar o monumento de Lênin. Os dois negros e os chineses foram junto com os estivadores. Ofegavam, apertavam as mãos de qualquer um e se regozijavam de alegria, como fugitivos dos trabalhos forçados.
Naquela hora, em Moscou, na praça Vermelha, baixavam ao túmulo o cadáver de Lênin. Entre nós, em Odessa, buzinas tocavam, a nevasca uivava e uma multidão caminhava, formada em fileiras. E só no navio Halifax o impenetrável contramestre se mantinha parado junto à escada de cordas, como uma sentinela na tempestade. Sob sua vigilância ambígua, o capitão O’Nearn bebia conhaque em sua cabine enfumaçada.
Ele confiou no contramestre, o O’Nearn, e ele perdeu — o capitão.

 Liev Tolstói


Tradução: Rubens Figueiredo


Contém um conto / companhia das letras


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