quinta-feira, 29 de maio de 2014

O Anti-Lázaro


(Nicanor Parra)

Morto não se levante dessa tumba
o que você ganharia ressuscitando?
seria uma façanha
e depois
a rotina de sempre
não lhe convém velho não lhe convém
o orgulho o sangue a avareza
a tirania do desejo sexual
as dores causadas pela mulher
o enigma do tempo
as arbitrariedades do espaço
pense bem morto pense bem
já esqueceu como eram as coisas?
ao menor empecilho você explodia
em xingamentos a torto e a direito
tudo lhe incomodava
você já não aturava
nem a própria sombra por companhia
memória fraca velho memória fraca!
seu coração era um monte de escombros
– estou citando seus próprios escritos –
e não restava nada de sua alma
para que voltar então ao inferno de Dante?
para reprisar toda a comédia?
que divina comédia que nada
fogos de artifício – miragens
isca para ratos gulosos
isso sim seria um disparate
felicidade é isso cadáver felicidade é isso
em seu sepulcro não falta nada
e você pode rir dos peixes coloridos
alô – alô está me ouvindo?
quem não preferiria
o amor da terra
às carícias de uma triste prostituta
ninguém de posse dos 5 sentidos
salvo tenha pacto com o diabo
dorme aí homem dorme aí
sem os aguilhões da dúvida
amo e senhor de seu próprio ataúde
na quietude da noite perfeita
livre da rosa e do espinho
como se nunca tivesse estado desperto
não ressuscite por motivo algum
não tem por que ficar nervoso
como disse o poeta
você tem toda a morte pela frente



Nenhum comentário: