Canção da Saudade
Se eu fosse cego amava toda a gente.
Não é por ti que dormes em meus braços que sinto amor.
Eu amo a minha irmã gemea que nasceu sem vida, e amo-a a fantazia-la viva na
minha edade.
Tu, meu amor, que nome é o teu? Dize onde vives,
dize onde móras, dize se vives ou se já nasceste.
Eu amo aquella mão branca dependurada da amurada da
galé que partia em busca de outras galés perdidas em mares longissimos.
Eu amo um sorriso que julgo ter visto em luz do
fim-do-dia por entre as gentes apressadas.
Eu amo aquellas mulheres formosas que indiferentes
passaram a meu lado e nunca mais os meus olhos pararam nelas.
Eu amo os cemiterios - as lágens são espessas
vidraças transparentes, e eu vejo deitadas em leitos florídos virgens núas, mulheres
bellas rindo-se para mim.
Eu amo a noite, porque na luz fugida as silhuetas
indecisas das mulheres são como as silhuetas indecisas das mulheres que vivem
em meus sonhos. Eu amo a lua do lado que eu nunca vi.
Se eu fosse cego amava toda a gente.
- Almada Negreiros, in 'Frisos - Revista Orpheu
nº1' (ortografia da época)
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