Aos apoiadores incondicionais (repito, incondicionais) da
Lava Jato e dos procedimentos por ela usados, em cumplicidade de Sergio Moro e
outros magistrados, ou ex magistrados, recomenda-se a leitura do impecável
editorial de O Estado de São Paulo. Copiei e publiquei na íntegra para os não
assinantes. Ah! Os que são contra a Lava Jato também ganharão muito com a
leitura. RR
Lições da Inquisição
Nos dias de hoje, em que com frequência se dá às delações um
crédito irrazoável e desproporcional, é instrutivo recordar que foi esse tipo
de testemunho que ocasionou, em muitos países, uma epidemia sangrenta de
perseguição
Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
28 de outubro de 2019 | 03h00
Nos anos 80, o Estado publicou um artigo do professor John
Tedeschi (A Outra Face da Inquisição, Suplemento de Cultura, 16/3/1986)
apontando como, ao contrário do que se consolidou no imaginário popular, já
havia na Inquisição romana do século 16 garantias processuais que depois seriam
incorporadas pelas legislações nacionais. O artigo indica, por exemplo, que o
Santo Ofício aplicava com frequência penas alternativas ao encarceramento, como
trabalhos obrigatórios em prisão domiciliar. Ou que cabia ao inquisidor prover
as despesas das testemunhas de defesa, caso o réu não dispusesse dos meios
necessários.
Tedeschi alerta que seu estudo se refere à instituição
estabelecida na Itália em meados do século 16, não devendo ser confundida “com
a Inquisição medieval que entrara em vigor no início do século 13 (e da qual a
Inquisição romana era a continuação) nem com o tribunal espanhol fundado em
1478 e cuja história é completamente distinta”. Também menciona que não deseja
amenizar os abusos cometidos pelos tribunais da Inquisição, nas diversas
épocas. Seu objetivo é, por meio de uma análise das fontes disponíveis, traçar
um panorama fidedigno do funcionamento daqueles tribunais.
À parte as controvérsias inerentes a trabalhos dessa
natureza, é interessante nestes tempos de indiferença às garantias penais – não
raro tratadas como “filigranas jurídicas” – revisitar direitos e proteções que
a Inquisição romana concedia aos acusados. Ainda que possa surpreender, talvez
a Inquisição tenha algo a ensinar sobre o devido processo legal.
“A Inquisição romana fez total uso, a partir do século 16,
de uma justiça legal (em contraposição a uma justiça moral). Pude mesmo
verificar, em cada caso, que Roma mandava aplicar escrupulosamente os
procedimentos adequados formulados pelos manuais para uso dos inquisidores”,
relata John Tedeschi. Não havia espaço para idiossincrasias ou protagonismos
arbitrários.
A respeito das razões para o sigilo processual – os
inquisidores faziam um solene voto de silêncio relativo a todo o processo judicial
–, o artigo aponta que, entre outros aspectos, “era preciso proteger a
reputação do acusado”. Havia um cuidado de fato com o princípio da presunção de
inocência.
No artigo, há documentos indicando que a Inquisição romana
era prudente antes de deter um suspeito. “É preciso mostrar-se muito prudente
no encarceramento de suspeitos, escreve Eliseo Masini num manual consagrado, Il
Sacro Arsenale, pois o simples fato de ser aprisionado por crime de heresia é
notavelmente infamante para a pessoa. Será, portanto, necessário estudar
cuidadosamente a natureza das provas, a qualidade das testemunhas e o estado do
acusado”, transcreve o professor Tedeschi.
O artigo menciona também a carta de um funcionário da
congregação romana dirigida a um inquisidor de Bolonha: “Que Vossa
Reverendíssima não se apresse em proceder a uma detenção, pois a simples
captura, ou mesmo a bulha que ela possa provocar, causa um grave dano”, diz o
documento redigido em 1573.
Ao elencar os motivos pelos quais não houve na Itália a
“epidemia sangrenta de perseguição dirigida a bruxos que assolou a Europa
setentrional no final do século 16 e durante boa parte do 17”, o artigo aponta
que a Inquisição romana “insistiu fortemente no fato de que o testemunho de uma
pessoa suspeita de bruxaria tinha uma validade extremamente limitada enquanto
fundamento de uma perseguição visando outras pessoas”.
Nos dias de hoje, em que com frequência se dá às delações um
crédito irrazoável e desproporcional, é instrutivo recordar que foi esse tipo
de testemunho que ocasionou, em muitos países, uma epidemia sangrenta de
perseguição. Esse dado histórico mostra a relevância para todos os cidadãos, e
não apenas para as partes envolvidas num determinado processo penal, do
respeito ao devido processo legal. Não são filigranas jurídicas. São nesses
aparentemente pequenos detalhes que se infiltram insidiosamente grandes
desequilíbrios e injustiças. Não convém ignorar as lições da história
Roberto Romano
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