terça-feira, 26 de setembro de 2017

O sangue das horas



Queixei-me de não ter pão
e a noite me disse não.
Mostrei-lhe a varanda nua
e a noite me trouxe a lua...
Você tem sede, não é ?
E a Noite me deu café.

São verdes como a esperança
as horas em que sou triste:
bem que existe não se alcança,
só cansa;
procuro o que não existe.

Se a dúvida me procura,
pondo a cerração do tédio
em minha existência obscura,
bebo esperança, remédio
para as feridas sem cura...

Que dúbio alvor de camélia
anda lá fora a flutuar ?
É noite que, de tão velha,
tão velha,
criou cabelos de luar...

A insônia do meu relógio
durante a noite passada
crivou-me o corpo, já enfermo,
de punhaladas sonoras...
Meus olhos são duas feridas
por onde escorre o sangue das horas.

Entre o passado e o porvir
aqueles peixes prata
não me deixaram dormir.
Tomei café sem parar.
Bebi treva em goles mudos...
Criei cabelo de luar.

in Poesia Brasileira do Século XX, Dos Modernistas à Actualidade, Dircção, Introdução e Notas de Jorge Henrique Bastos, Edições Antígona


Cassiano Ricardo Leite (n. em São José dos Campos (SP) a 26 de Jul de 1895; m. em 14 de Jan 1974 no Rio de Janeiro)

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