domingo, 8 de março de 2015

O ANIMAL QUE LOGO SOU

Frequentemente me pergunto, para ver, quem sou eu - e quem sou eu no momento em que, surpreendido nu, em silêncio, pelo olhar de um animal, por exemplo os olhos de um gato, tenho dificuldade, sim, dificuldade de vencer um incômodo.
Por que essa dificuldade?
Tenho dificuldade de reprimir um movimento de pudor. Dificuldade de calar em mim um protesto contra a indecência. Contra o mal-estar que pode haver em encontrar-se nu, o sexo exposto, nu diante de um gato que nos observa sem se mexer, apenas para ver. Mal-estar de um tal animal nu diante de outro animal, assim, poder-se-ia dizer uma espécie de animal-estar: a experiência original, única e incomparável deste mal-estar que haveria em aparecer verdadeiramente nu, diante do olhar insistente do animal, um olhar benevolente ou impiedoso, surpreso ou que reconhece. Um olhar de vidente, de visionário ou de cego extralúcido. É como se eu tivesse vergonha, então, nu diante do gato, mas também vergonha de ter vergonha. Reflexão da vergonha, espelho de uma vergonha envergonhada dela mesma, de uma vergonha ao mesmo tempo especular, injustificável e inconfessável. No centro ótico de uma tal reflexão se encontraria a coisa - e aos meus olhos o foco dessa experiência incomparável que se chama nudez. E que se acredita ser o próprio do homem, quer dizer, estranha aos animais, nus como são, pensamos então, sem a menor consciência de sê-lo.


JACQUES DERRIDA, "O ANIMAL QUE LOGO SOU" (Editora Unesp, 2. edição, 2011), tradução de Fábio Landa.

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