A praça Taksim e a história de Istambul
ORHAN PAMUK
RESUMO
O Prêmio Nobel de Literatura manifesta apoio aos recentes
protestos na praça Taksim, em Istambul, cujo estopim foi a decisão
governamental de arrasar o parque Gezi. A partir de vigília realizada por sua
família, em 1957, contra o corte de uma castanheira, ele evoca momentos
afetivos e políticos ligados à praça e à cidade.
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Para compreender os acontecimentos em Istambul e entender
essas pessoas corajosas que estão nas ruas, combatendo a polícia e sufocando
com a fumaça venenosa do gás lacrimogêneo, quero começar com uma história
pessoal.
Em meu livro de memórias "Istambul" (Companhia das
Letras, 2007), escrevi sobre como minha família inteira vivia nos apartamentos
que compunham o prédio Pamuk, em Ni?anta??. Em frente a esse prédio havia uma
castanheira de 50 anos de idade, que, felizmente, continua ali. Mas, certo dia,
em 1957, o prefeitura decidiu derrubar essa árvore para alargar a rua. Os
burocratas presunçosos e governadores autoritários ignoraram a oposição do
bairro.
Assim, no dia em que a árvore seria cortada, meu tio, meu
pai e a família toda passaram dia e noite na rua, revezando-se para montar
guarda. Dessa maneira protegemos nossa árvore; mas também criamos uma memória
compartilhada que a família toda ainda recorda com prazer e que nos une.
Hoje a praça Taksim é a castanheira de Istambul e deve
continuar a sê-lo. Vivo em Istambul há quase 60 anos e não posso imaginar que
haja um único morador da cidade que não tenha pelo menos uma recordação
vinculada de algum modo à praça.
Nos anos 1930, o velho quartel de artilharia que agora
querem converter num shopping center continha um pequeno estádio de futebol
onde eram promovidas partidas oficiais. O famoso "Taksim Gazino", que
ocupava o centro da vida noturna de Istambul nas décadas de 1940 e 1950, ficava
numa esquina do parque Gezi.
Mais tarde todas essas construções foram demolidas, árvores
foram cortadas, novas árvores foram plantadas, e uma fileira de lojas e a
galeria de arte mais famosa de Istambul foram instaladas em uma lateral do
parque. Nos anos 1960 eu sonhava em ser pintor e expor meus trabalhos nessa
galeria.
Nos anos 1970, a praça foi palco de comemorações
entusiásticas do Dia do Trabalho promovidas por sindicatos e ONGs de esquerda
e, durante algum tempo, eu mesmo participei dessas comemorações. (Em 1977, 42
pessoas foram mortas numa explosão de violência provocada e no caos que a
seguiu.) Durante minha juventude, assisti com curiosidade e prazer a toda
espécie de partidos políticos --partidos da direita e da esquerda,
nacionalistas, conservadores, socialistas, social-democratas-- promovendo
comícios em Taksim.
Neste ano o governo proibiu a celebração do Dia do Trabalho
na praça. Quanto ao quartel, que supostamente seria reconstruído, todos em
Istambul sabem que ele acabaria como mais um shopping ocupando o último espaço
verde que resta no centro da cidade.
O fato de que mudanças tão significativas na praça e no
parque que abrigam as memórias de milhões de pessoas tenham sido planejadas e
realizadas até a etapa da derrubada de árvores sem que a população de Istambul
tenha sido consultada antes foi um erro grave do governo de Erdogan.
Fica claro que essa atitude insensível nasce do desvio
crescente do governo rumo ao autoritarismo. (O relatório de direitos humanos da
Turquia é hoje o pior de uma década.) Mas me enche de esperança e confiança ver
que o povo de Istambul não vai abrir mão nem de seu direito de promover
manifestações políticas na praça nem de suas memórias sem lutar.
tradução CLARA ALLAIN
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