terça-feira, 31 de julho de 2012

Sociedade em negação

29 de julho de 2012

Lee Siegel – O Estado de S.Paulo

NOVA JERSEY – Quando teve início o tiroteio naquele cinema em Aurora, Colorado, na semana passada, o filme chegou ao fim. Depois do término do tiroteio, um novo filme começou. Poderíamos chamá-lo de filme da negação, da ilusão e dos fins felizes. Trata-se do filme nacional que vem sendo exibido desde o nascimento da república americana.


Veja a versão em inglês

Bertolt Brecht inventou a ideia do “efeito de distanciamento” como ferramenta teatral. Em vez de criar para uma peça um final repleto de soluções agradáveis, Brecht recomendava fins cheios de sofrimento, dor e injustiça. Assim, pensou ele, o público sairia tão perturbado, indignado e até enfurecido a ponto de se tornar intolerante diante da injustiça social ao seu redor. Gostaria que a mídia americana empregasse a convenção de Brecht.

O que ocorreu em Aurora foi aleatório, sem sentido, vazio de significado e desprovido de narrativa. O rapaz de 24 anos que cometeu os assassinatos, James Holmes, não se enquadra em nenhum tipo de perfil típico para os assassinos em massa. Não existe perfil típico para um assassino em massa. A única constante são as armas que os assassinos em massa usam para matar. Mas, como os infantis Estados Unidos são incapazes de reunir a coragem necessária para deter o lobby das armas, e como os românticos e eternamente inocentes EUA são fanáticos pela felicidade e os fins felizes, a classe comentarista americana volta sua atenção para os homens que empunham as armas. E, quando os comentaristas e especialistas terminam sua investigação e análise, eles acabam por tecer um conto perfeitamente estruturado, reconfortante nos seus esclarecimentos e explicações.

Assim, deixamos para trás O Cavaleiro das Trevas Ressurge e nos vemos agora no meio de A Lenda Heroica do Massacre de Aurora. Muitas das pessoas que estavam naquele cinema de fato agiram de maneira heroica. Lágrimas me vêm aos olhos quando penso no jovem – ele cresceu na cidade que fica bem ao lado daquela onde moro – que se jogou na frente da namorada para salvá-la. Ele foi morto por uma saraivada de balas, mas ela sobreviveu. Ao se concentrar nos feitos heroicos das vítimas e não nos atos horrendos do assassino, a mídia implica que, longe de ser uma atrocidade sem sentido, todo o evento foi uma afirmação do espírito humano. Isso me parece algo nojento e depravado. Uma das conclusões que poderíamos tirar de uma afirmação tão perversa seria a de que a doentia permissividade das leis atuais de controle das armas não deveria ser revista. Como vemos, as pessoas são capazes de suportar qualquer coisa. Mas os mortos não podem suportar nada, nem aqueles que ficaram marcados, seja mental ou fisicamente, para o resto da vida.

Depois da distorcida caricatura daquilo que realmente ocorreu no cinema naquela noite, fomos então apresentados a outro longa metragem: A História Daquilo Que Leva Um Assassino a Agir. Somos informados que Holmes tinha sido reprovado nos exames orais para seu doutoramento em neurociência. Ele sempre foi “esquisito”. Parece que nunca teve uma namorada. Apesar do fracasso no exame oral, ele era um cientista “brilhante”; e é claro que a esquisitice social e a preferência por assuntos cabeça equivalem ao assassinato em massa. Mais uma vez, não há motivo para mudar as leis de controle de armas. Basta tomar cuidado com pessoas tímidas de aparência intelectual, denunciando-as à polícia sempre que as encontrarmos.

Nenhuma revelação a respeito da vida de Holmes vai consolar alguém cuja vida tenha sido tocada pelo massacre. O fato é que as informações a respeito de sua vida e personalidade que estão agora vindo à tona são irrelevantes. Quem é religioso o considera mau, e quem é racionalista secular o vê como insano. Em ambos os casos, ele não passa de uma entidade genérica e pouco distinta. Maldade e insanidade são condições extremas e niveladoras. O que quer que tenha feito de Holmes um indivíduo desapareceu numa categoria genérica no segundo em que ele começou a matar.

Mas o posicionamento e a criação de narrativas por parte do público continuam, mesmo quando a solução para o problema está encarando todos diretamente. Logo após o massacre, o prefeito de Nova York, Michael Bloomberg, foi ao ar para castigar Obama, Romney e todo o establishment político por sua passividade diante do tema do controle de armamentos. “Discursos reconfortantes”, disse Bloomberg, são bem-vindos, mas não servem como substitutos de medidas que possam levar a uma mudança real. Quanta coragem, prefeito! Infelizmente, suas palavras de indignação são tão repreensíveis quanto as palavras de conforto que criticou.

Afinal, o prefeito Bloomberg é dono de uma fortuna de US$ 18 bilhões. Dezoito bilhões de dólares. Trata-se de uma soma superior ao orçamento anual de um país pequeno. O obstáculo que impede a aprovação de leis de controle das armas é a National Rifle Association, que faz contribuições anuais de milhões de dólares para os legisladores que, então, vetam todos os esforços no sentido de limitar o acesso dos americanos às armas. Bloomberg poderia usar uma parte de sua fortuna – 1 bilhão de dólares, digamos -, bater a melhor oferta da NRA e comprar, por meio do suborno legal conhecido como “contribuição de campanha”, cada um dos políticos que defendem a indústria dos armamentos no país. Em dois anos, os EUA de fato tornariam ilegal – vejam vocês! – a posse de armas semiautomáticas.

Mas é melhor ainda fazer pose e condenar eloquentemente os próprios pares a partir do cume do Olimpo. Trata-se de algo mais grandioso e de um maior heroísmo aparente. Quem sabe alguém transforme Bloomberg e sua posição ousada num frenético filme de ação. Então o tiroteio poderá recomeçar, assim como a negação e as narrativas delirantes.
A society in denial

29 de julho de 2012

Lee Siegel – O Estado SP

NEW JERSEY – When the shooting began in that movie-theater in Aurora, Colorado last week, the movie came to an end. After the shooting stopped, a new movie began. Call it the movie of denial, illusion and happy endings. It is the national movie that has been playing since the dawn of the American republic.

Bertolt Brecht invented the idea of the “alienation-effect” as a theatrical device. Instead of a play’s finale consisting of neat resolutions, Brecht recommended endings full of suffering, pain and injustice. That way, he reasoned, audiences would leave so unfulfilled, indignant and perhaps enraged, that they would become intolerant of the social injustice around them. I wish the American media would make use of Brecht’s convention.

What happened in Aurora was random, meaningless, senseless, devoid of a narrative. The 24-year-old man who committed the murders, James Holmes, does not fit into any kind of typical profile of a mass killer. There is no type of the mass killer. The only constant is the guns mass murderers use to kill. But because infantile America cannot muster the courage to stop the gun lobby, and because romantic, eternally innocent America is fanatic about happiness and happy endings, the American commenting class turns its attention to the men who hold the guns. And by the time, the commenters and experts have finished their scrutinizing and analyzing, they have woven a tidily structured tale, comforting in its illuminations and explanations.

So from “The Dark Knight Rises” we now are in the midst of “The Heroic Tale of the Aurora Massacre.” Many of the people in that theater did indeed act heroically. Tears come to my eyes when I think of the young man – he grew up in the next town over from where I live – who threw himself in front his girlfriend to save her. He was killed by a shower of bullets, but she survived. Yet by concentrating on the heroic deeds of the victims and not on the heinous actions of the killer, the media implies that, far from being a senseless atrocity, the whole event was an affirmation of the human spirit. I find that disgusting and depraved. One of the conclusions one could draw from such a perverse affirmation is that the sick permissiveness of current gun laws should not be revised. People, you see, can endure anything. But dead people cannot endure anything, and neither can people maimed, mentally and/or physically, for life.

After the twisted caricature of what really happened in the theater that night, we were then treated to another major motion picture: “The Story of What Makes A Killer Tick.” Holmes, we were informed, had failed the oral exams for his doctorate in neuro-science. He had always been “awkward.” It seems that he never had a girlfriend. Despite the failed oral exam, he was a “brilliant” scientist; and, of course, braininess and social awkwardness equal mass murder. Once again, there is no reason to change the gun laws. Just be on the lookout for shy intellectual types and report them to the police as soon as you encounter them.

No amount of insight into Holmes’ life is going to console anyone whose life was touched by the massacre. The fact is that the information about his life and personality that is emerging now is entirely boring. He is either evil, if you are a religious person,or, if you are a secular rationalist, he is insane. In either case, he is a bland and undifferentiated entity. Evil and insanity are extreme, levelling conditions. Whatever made Holmes an individual vanished into a generic category the second he started killing.

But the public posturing and storytelling continue, even when the solution to the problem is staring everyone in the face. Right after the massacre, New York Mayor Michael Bloomberg took to the airwaves to castigate Obama, Romney and the entire political establishment for their passiveness with regard to gun control. “Soothing words,” Bloomberg said, are fine, but they are no substitute for action that will lead to real change. Good for the mayor! Unfortunately, his indignant words are just as culpable as the soothing words he deplored.

For Mayor Bloomber is worth 18 billion dollars. Eighteen billion dollars. That is more than the national budget of a small country. The obstacle to gun control legislation is the National Rifle Association, which contributes millions of dollars every year to legislators who then rebuff any effort to limit Americans’ access to guns. Bloomberg could take just a fraction of his fortune – say, 1 billion dollars – top the NRA’s best offer and buy off, in the form of the legal bribe known as the “campaign contribution,” every pro-gun politician in the country. In two years, America would – lo and behold! – actually make it illegal to own a semi-automatic weapon.

Better, however, to grandstand and eloquently condemn your peers from an Olympian height. It is grander, and more heroic-seeming. And, who knows, maybe someone will turn Bloomberg and his bold position into a fast-paced action film. Then the shooting can begin again, and so can the denying and deluding storytelling.

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