Arquivo Aberto
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS
São Paulo, março de 2010
Arquivo pessoal
Boris, Ricardo e Candido, na casa do crítico, em tarde sobre Fausto
JERUSA PIRES FERREIRA – FOLHA SP
Cheguei da Bahia, em 1977, para o doutorado na USP. Apesar de trabalhar com a novela de cavalaria ibérica e sua permanência no sertão brasileiro, já trazia o Fausto em minhas cogitações. Enxergava o personagem da lenda alemã, base de tantas obras de ficção, nos folhetos populares de pactos, de presença demoníaca tão bem assentada.
Nesse tempo, veio do Canadá, para dar um curso na Unicamp, o medievalista Paul Zumthor, que se tornaria grande amigo e mestre. Foi então que vim a conhecer pessoalmente Antonio Candido, que sempre me acolheu com generosidade, gentileza e carinho.
Com Olympio, meu então companheiro, passei a frequentar sua casa, aquele sobradinho do Itaim Bibi, recebendo de Gilda grande atenção. Lembro que uma vez, levando-me em sua Brasília bege ao bairro popular onde eu vivia, Candido foi decodificando, a partir de meus compulsivos relatos mitopoéticos, trechos da coleção de fábulas indianas Panchatantra. Preparava então a tese de doutoramento, orientada por Ruy Coelho.
Um dia, naqueles fins de tarde, boca da noite, contei-lhe das incursões por Fausto. Entusiasmou-se e me disse da importância para ele do texto de Goethe. Comentou que desde a infância o personagem fazia parte de sua vida.
“Como assim?”, perguntei.
Começou então a recordar o ambiente de sua infância e adolescência, recitou trechos do drama, cantou outros. Conduziu-me ao tema com um encantamento que só a memória das coisas intensamente vividas pode trazer. Lembranças dos irmãos, da casa, dos pais. Também me ofereceu livros.
Aquele encontro ficou bem marcado para mim. A vida nos levou por outros caminhos, mas o tema fáustico ficou sempre à espreita.
Trinta e dois anos depois, em março de 2010, volto à sua casa para ouvi-lo sobre Fausto, agora acompanhada por Boris Schnaiderman e meu neto Ricardo. Retomamos o que tínhamos deixado suspenso por tantos anos. No seu apartamento dos Jardins, permite que eu registre suas lembranças no gravador.
Vai evocando os acontecimentos por uma via que diz inesperada, recordando as vivências em Poços de Caldas, a terra de seu pai, médico, enquanto sua mãe, vinda do Rio, parecia sentir-se muito exilada. Tinham uma boa biblioteca. O pai costumava ler, e ela contava coisas das óperas que tinha visto no Rio antes de casar.
O jovem Candido ficava fascinado com a história do Fausto, tão difundida pela Opera de Gounod e por outros textos em circulação. Junto com os irmãos, Roberto e Miguel, passou a brincar de Fausto, fechando as janelas, usando um castiçal de prata e servindo-se de um cobertor para fazer evocações: “Salamandra!”, “Dr. Fausto!”.
Nesse encontro mais recente, ele recita, canta, discute… Não se importaria de ser filmado, mas estava munida só de gravador. E é pela dicção, pelo som de sua voz, que passo a transmitir este arquivo vivo de lembranças, de crítica em constante exercício, de autocrítica, como é o seu jeito.
As horas de convívio resultaram numa extensa gravação, transcrita em muitas páginas, documento sonoro contendo preciosas informações e ainda em revisão, a ser incluído em livro que preparo sobre os Faustos ibero e latino-americanos, tema para uma vida inteira.
Fiz pós-doutorado na Alemanha, buscando conexões para entender sobretudo a rede de textos populares: ali, na Inglaterra e em latitudes diversas. E é então que as recriações em muitas línguas ganham força, num conjunto que batizamos tecido fáustico.
Temos agora na escuta trechos do Fausto de Antonio Feliciano de Castilho (1800-75), um Fausto de ouvido, guardado de cor ao longo da vida por Candido: “Custei a aceitar o texto de Goethe, porque o que queria era o de Castilho”. Louva a capacidade inventiva do polêmico poeta cego, que não sabia alemão, mas transmitiu como poucos, em acentos populares, as histórias do doutor pactário, de Mefisto, conduzidos em espantosa adaptação.
Revela-se aí um convívio com o texto, que ele explica com graça sem igual. Inclusive a famosa balada da pulga ou as travessuras dos rapazes na taberna de Auerbach:
“Era uma vez um ratinho/ que tinha feito seu ninho/ numa despensa real./ A despensa era tamanha/ que em mar de manteiga e banha/ nadava o nosso animal./ Rói, rói, rói, não tem parança./ Engorda, cresce-lhe a pança/ de modo descomunal/ Nem o pai de nosso clero,/O grande Dr. Lutero,/ se gabou de pança tal”.
Talento e graça acompanham mais esse texto fáustico, na leitura, na memória e na dicção de Candido. O Fausto passa por ele.
Ao acompanhar em minhas pesquisas os Faustos que continuam brotando aqui e ali, ao ver o Fausto do filme de Alexandr Sokurov, de certo modo autoral, em que têm força as discussões sobre ciência, poder e amor, ou assistindo à peça “Fogo-Fátuo”, de Samir Yazbeck, penso na importância de um depoimento como esse. Gravado e transcrito, de longa memória, profundo e intenso como o tema que o conduz.
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