terça-feira, 31 de julho de 2012

Adeus, cavalo

A máscara branca

NUNO RAMOS – FOLHA SP

Há quanto tempo esperava por ele, o gravador ligado? Já ouvia resmungos impacientes no entourage do ator, que não dissera nada, absolutamente nada, imobilizado em frente ao espelho enquanto colocava uma sequência interminável de cremes e acenava para ele com a cabeça. A verdade é que parecia ainda mais velho agora, por trás da máscara branca. Para cobrir sua calvície, o jovem assistente trouxe uma tiara, de onde pendia um manto aveludado que descia até a cintura. Parecia um fantoche japonês. Quando se levantou, as mãos trêmulas, mostrou-se surpreendentemente alto.

-Darei a entrevista em cena, pronunciou gravemente, dirigindo-se a todos, e sem nada acrescentar seguiu para a sala de relaxamento, onde costumava adormecer por alguns momentos antes de iniciar sua performance. Girando o polegar na própria testa, como se o velho estivesse gagá, seu assistente piscou para o jornalista.

Teve tempo então de passear pelas coxias e grutas aveludadas dos camarotes do velho teatro, até encontrar seu lugar. Reviu mentalmente as perguntas que deveria ter feito e perguntou-se se não fora obediente demais, e como seu editor reagiria.

Mal pousou os olhos sobre o programa, onde metade do rosto do ator estava impressa, as luzes diminuíram lentamente e uma campainha soou. Depois soou novamente e o teatro encheu-se dessa energia suspensa que centenas de adultos liberam ao sentarem-se silenciosamente no escuro, como crianças obedientes. Uma trompa veio das coxias; ruídos de uma cortina se abrindo, de passos e de mecanismos arrastados; algo tombou e o palco acendeu-se.

O ator estava deitado, envolto numa espécie de quimono. Flocos parecidos com neve caíam sobre ele enquanto o resto do tablado permanecia intacto, as tábuas de madeira aparente. Ficou deitado por quase um minuto, fazendo gestos sutis com a mão e a perna direitos, como se saísse de uma convulsão.

Então levantou-se de um salto. Sua estatura, que espantara o jornalista, surpreendia agora toda a plateia. Mesmo entre as enormes cortinas de veludo claro, que delimitavam sua solidão, o velho ator parecia imenso. Colocou-se, então, na posição de largada para uma corrida de cem metros rasos, levantando a cabeça para olhar à frente.

Em seguida efetivamente largou, correndo desajeitadamente, sempre seguido pelos flocos de neve, até o proscênio e encarando a plateia. O jornalista espantou-se com a violência daquela máscara, que vira de perto sem dar atenção -agora encontrava nela as penas de um pássaro desconhecido, a memória de um ídolo arqueológico, a textura e a mobilidade de um cortinado rococó.

-Fui um rouxinol, uma pedra, um peixe carnudo dentro da corrente fria.

O silêncio prolongado que seguiu àquela frase, dita de modo pausado e grave, pesou sobre todos. Estendeu os braços horizontalmente, e suas mãos, de tão largas, pareciam tocar as cortinas de veludo branco nas extremidades do palco. Dobrou os joelhos e caminhou num largo círculo, executando com incrível solenidade uma espécie de sequência ioga ou tai chi. Então, bem no centro daquele espaço que delimitara com seus passos, abandonou os braços e a cabeça, relaxando completamente, dobrando os joelhos e deixando a máscara cair. Com a mão direita levantou a tiara, soltando sua frouxa cabeleira e mostrando as clareiras laterais da calvície.

Ainda de cabeça baixa, abriu os botões na altura do ombro, derrubando o quimono e pisando sobre ele enquanto caminhava para a frente, até a pontinha do palco, envolto agora, como uma múmia, em tiras de gaze fina. Numa lenta e larga mesura, pronunciou a última palavra que diria aquela noite -obrigado. Voltando as costas para a platéia (a neve continuava a cair sobre ele), mostrando as nádegas alvas que as fitas de gaze não cobriam, caminhou para o centro do imenso palco enquanto as cortinas de veludo branco se fechavam. Não ocorreu a ninguém bater palmas, nem vaiar, nem dizer nada. Com as luzes ainda apagadas, uma plateia incrivelmente dócil arrastou-se para fora no mais perfeito silêncio.

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