Especial: Idiomas e variedade
Literatura 'nacional' ou 'universal'?
Aos escritores "cuja língua materna não é o alemão", embora escrevam no idioma do país, é destinado anualmente o Prêmio Adelbert von Chamisso, concedido desde 1985. Os autores em questão, embora tematizem com freqüência, em suas obras, questões relacionadas à construção da identidade cultural, costumam demonstrar uma certa resistência a rótulos como Migrantenliteratur (literatura de migrantes).
Essa denominação certamente pareceria absurda nos países vizinhos França e Reino Unido, onde não seria bem visto categorizar a obra de um escritor nascido no país, que domine perfeitamente o idioma, de "literatura de migrante".
Transição de culturas
Wladimir Kaminer: 'Meus leitores gostam do que escrevo. A eles não importa minha origem'
"Decisivo para a concessão do Prêmio Adelbert von Chamisso é, além da qualidade literária, o câmbio de idioma e cultura pelo qual estes autores, via de regra, passaram. Há também casos limítrofes, como o de escritores que nasceram na Alemanha, mas cresceram bilíngues, como o de Zsuzsa Bánk [filha de imigrantes húngaros nascida em Frankfurt]. E outros que, embora tenham vindo ainda na infância para a Alemanha, mantêm o outro idioma, como [o turco-alemão] Feridun Zaimoglu", diz Klaus Hübner, um dos organizadores do prêmio concedido pela Fundação Bosch.
Ser considerado "escritor alemão não-alemão", apesar do toque aburdo da denominação, acaba muitas vezes se tornando um bônus para estes autores no mercado. O russo Wladimir Kaminer, que se mudou já adulto para Berlim e é autor de diversos livros publicados no país, acredita que rotular um autor pela sua origem é mais uma tendência da mídia que da opinião pública.
Mudança de percepção
Adel Karasholi: 'significados e associações comuns'
Alteridade e estranhamento
Terézia Mora
Alguns dos escritores que receberam o Prêmio Chamisso no passado pertencem a minorias alemãs fora do país, como é o caso da húngara radicada em Berlim, Terézia Mora. A família da mãe da escritora é de croatas que falam alemão. Mesmo tendo crescido em um pequeno povoado húngaro, Mora falou alemão em casa e freqüentou uma escola onde aperfeiçoou o aprendizado do idioma.
Talvez por isso a escritora, que vive há 16 anos em Berlim, reaja com uma certa hostilidade ao ser questionada sobre seu nome entre os de escritores "não-alemães" que publicam no país. "Não tenho tempo para questões deste tipo", reage Mora, que em seus livros, porém, tematiza com freqüência a alteridade e o estranhamento desencadeados pelo trânsito entre culturas.
Em Alle Tage (Todos os dias), por exemplo, o protagonista Abel Nema domina com perfeição dez idiomas, embora não consiga dialogar com ninguém, vivendo no limiar da sociedade, entre traficantes de drogas e músicos outsiders. Uma figura sem origem, incapaz de se comunicar e de se sentir em casa em qualquer lugar.
Influências formais
A lista dos "escritores estrangeiros" é grande e o assunto chegou no decorrer das últimas décadas à vida acadêmica. Nas universidades, cresce também o interesse pela literatura daqueles considerados "de língua não-alemã", principalmente pelo caráter estético e formal, muitas vezes influenciado pelo "outro idioma" do escritor em questão.
Yoko Tawada: 'sons estranhos'
Yoko Tawada é outro exemplo. A japonesa vive há 24 anos na Alemanha e é autora de diversos livros no idioma do país. O estranhamento da língua estrangeira é explícito na obra de Tawada. "Todo som estranho, todo olhar estranho e todo sabor estranho surtiam efeitos desconfortáveis em meu corpo. Havia também provérbios dos quais eu sentia arrepios", escreve a autora de, entre outros, Das Fremde aus der Dose (O Outro que vem da lata).
Apesar das trajetórias de interculturalidade, é evidente que o rótulo "literatura da migração" acaba sendo pertinente apenas em relação a poucos escritores. "Literatura é literatura. A literatura é capaz de quebrar fronteiras despreocupadamente. Ela não precisa de visto ou nacionalidade. Sua identidade é estética e não sociológica", observa Karasholi.
O brasileiro Zé do Rock, por exemplo, vive há vários anos em Munique e tem livros publicados no país, nos quais cria neologismos unidos sob os rótulos de ultradoitsh ou wunschdoitsh. No entanto, Zé do Rock acredita que seus livros tenham pouco ou nada a ver com a situação dos imigrantes na Alemanha. "Eu cataloguizaria meus livros como deutsche Literatur, já que são escritos em alemão", diz.
Sem chão
Vilém Flusser (1920–1991): 'sem chão'
Ignorar as dores de uma transição cultural seria tão estúpido, porém, quanto fechar os olhos para a riqueza da herança cultural presente nas gerações de migrantes. O filósofo Vilém Flusser, que passou sua vida transitando entre pelo menos quatro idiomas (tcheco, alemão, português e francês) e vários países, descreve em sua autobiografia Bodenlos (Sem chão), que ao passar de um universo cultural e lingüístico a outro, o "novo" idioma acaba reprimindo, passo a passo, a língua materna como estrutura de pensamento. Para Flusser, quando o indivíduo "paira sobre um complexo de culturas", ele perde o chão.
Uma situação de dualidade que pode também ser vista com menos pessimismo, como observa Adel Karasholi, que hoje escreve tanto em árabe quanto em alemão: "No fim dos anos 70, tentei não ler mais o livro do mundo, mas como diz Proust, o meu livro interior. O destinatário do que escrevo se tornou menos importante e, com isso, também a escolha do idioma. Aí surgiram até mesmo ciclos poéticos como os presentes em meu último livro de poemas Also sprach Abdulla (Assim falou Abdulla), escrito parcialmente em árabe, parcialmente em alemão. Pois, no íntimo, vocifera não apenas uma luta contínua entre os dois pólos, mas também, depois de tanto tempo, um abraço entre eles".
Fonte Deutche welle
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