Ousadias e desencanto marcam ‘A Visita Cruel do Tempo’, de Jennifer Egan
Jennifer, que foi eleita uma das 100 pessoas mais influentes do mundo no ano passado
Manoela Sawitzki – O Estado SP
Para escrever seu quinto livro, a norte-americana Jennifer Egan afirma que se serviu de referências surpreendentemente distintas: Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, Pulp Fiction, filme de Quentin Tarantino, e Família Soprano, uma série televisiva de sucesso. O resultado arrebatou o júri do Pulitzer Prize, que deu ao romance A Visita Cruel do Tempo (A Visit From the Goon Squad, no original) o prêmio de melhor ficção de 2011. A obra também recebeu outras premiações importantes, como o National Book Critics Circle, e tem se desdobrado numa profusão de traduções e vendagens substanciosas. Mas dizer isso tudo é somente sublinhar o que o leitor entenderá por si se deixando tragar pelo caleidoscópio humano de Egan.
A escritora ousa e se arrisca ao suspender noções cartesianas de espaço e tempo. Passado e futuro coexistem na alternância aparentemente caótica de episódios. Porções de um período estão contidas no outro, mesmo que sob o viés da contradição. A memória revela a argamassa original, matéria a partir da qual sujeitos são moldados e deformados. É construída assim uma narrativa fragmentada, polifônica, que subverte as fronteiras pacificadoras entre continuidade e descontinuidade de discurso. E há algo de autêntico, franco na forma como as muitas histórias e vozes ali contidas se desvelam e entrelaçam que garante uma unidade singular ao livro. Embora nem sempre o texto se mantenha fluente, o vigor narrativo acaba por se impor. Isto porque Jennifer Egan sabe ousar e se arriscar numa medida rara.
Resumir sem reduzir os saltos e conexões desse exercício de fabulação notável é tarefa inglória. Dividido em duas partes, A e B, compostas por pequenos capítulos, A Visita Cruel do Tempo dá conta de cerca de quatro décadas e mais de duas dezenas de personagens. Valendo-se ora da terceira, ora da primeira pessoa (e conseguindo utilizar a segunda com destreza em um trecho comovente do livro), a narração retrocede e avança por diferentes etapas dessas vidas com cortes precisos. Ao longo de 13 capítulos, coadjuvantes tornam-se protagonistas (e vice-versa). Cada capítulo possui tom próprio, cada época compõe seu elenco.
Começamos com Sasha, ex-assistente de Bennie Salazar, importante executivo da indústria musical americana. Diante do analista, ela discorre sobre um recente episódio envolvendo seu “problema” e a noite de sexo casual com Alex, jovem recém-chegado a Nova York que conheceu pela internet. Seu “problema” é a cleptomania. Na década anterior foi namorada de Drew e melhor amiga de Rob, que tentou o suicídio e parecia não estar de acordo com nada no mundo à sua volta. Bennie, aos 40 e poucos anos, se recupera do divórcio, salpica flocos de ouro em xícaras de café – receita afrodisíaca obtida num livro sobre medicina asteca – e ainda se embaraça com os vexames do passado, desde quando era o péssimo baixista da banda punk Flaming Dildos. Nessa época conheceu Lou, um produtor musical que tenta fugir do impacto da velhice cercando-se de namoradas e esposas muito jovens. Stephanie trai a juventude roqueira tornando-se parceira de tênis de uma loira republicana no Country Club de um bairro esnobe. Enquanto isso, Jules, seu irmão, jornalista especializado em celebridades, condenado à prisão por atacar uma jovem atriz de Hollywood durante uma entrevista, é solto. Músicos fazem sucesso, frequentam o ostracismo, engordam e ensaiam retornos – um deles assumidamente suicida. A assessora de imprensa Dolly é banida dos meios sociais e acaba trabalhando a imagem de um ditador genocida. A menina Alison inventaria o cotidiano da família Blake num diário escrito em PowerPoint. E ainda não estamos perto de abranger uma parte substanciosa da trama. De um safári na África de 1973, a um concerto de rock ao ar livre em uma Nova York futurista, repleta de helicópteros, o fôlego de Jennifer Egan parece inesgotável.
A Visita Cruel do Tempo trata da distopia de uma geração forjada em meio ao cenário musical underground dos anos 70, que chega despreparada à explosão consumista e à tirania do retoque do século 21, e terá que se confrontar com os novos parâmetros da cibercultura. E toma pelas mãos os herdeiros, crianças que crescem sob o impacto desse emaranhado de incertezas e reelaborações. Ao se questionar sobre que tipo de evento simbolizará o mundo novo que se desenha à sua frente, por exemplo, Dolly sabe que a resposta já não está consigo, mas com Lulu, sua filha. “Se existem crianças deve existir futuro, certo?”, quer acreditar Alex.
Entre encontros, separações, vidas perdidas e destinos às vezes magicamente reorganizados, um personagem é onipresente, central e contínuo em sua missão: o tempo. “O tempo é cruel, não é? Vai deixar ele intimidar você?”, pergunta Bennie ao guitarrista aterrorizado, incapaz de voltar ao palcos. “O tempo venceu”, ele responde. O esquadrão que nos impõe sua marcha sempre vencerá.
TRECHO
“Bennie deixou-o descer do carro e lhe deu um forte abraço. Como sempre, Chris se imobilizou em seus braços, mas Bennie nunca sabia dizer se estava aproveitando ou suportando o abraço. Ele recuou e olhou para o filho. O bebê que ele e Stephanie tinham afagado e beijado agora era aquela presença dolorosa, cheia de mistério.”
A VISITA CRUEL DO TEMPO
Autora: Jennifer Egan
Tradução: Fernanda Abreu
Editora: Intrínseca (336 págs., R$ 29; e-book: R$ 19,90)
MANOELA SAWITZKI É AUTORA DO ROMANCE SUÍTE DAMA DA NOITE (RECORD)
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