A partir da análise de ‘Os Miseráveis’, de Victor Hugo, ‘A Tentação do Impossível’, de Mario Vargas Llosa, reflete sobre as ambições que norteiam a arte da escrita
28 de janeiro de 2012
Ensaio de Vargas Llosa é o testemunho de seu fascínio pela cultura francesa – Justin Lane/EFE – Arquivo
Carlos Granés – O Estado SP
A julgar pela vastidão da obra que deixou, pareceria que a vida de Victor Hugo se consagrou exclusivamente a compor poemas, redigir ensaios, escrever peças de teatro e planejar suas imensas criações literárias. Assim parece porque quem quisesse esgotar sua bibliografia teria de gastar pelo menos dez anos lendo seus romances e as milhares de páginas que foi redigindo com facilidade invejável desde que descobriu sua vocação literária, antes dos 15 anos de idade. O surpreendente é que não foi assim. Victor Hugo também teve tempo para participar dos acontecimentos que marcaram o curso do século 19 francês, e viver grandes aventuras amorosas com mulheres de todas as condições sociais, de damas da alta sociedade até criadas, às quais seduzia ou pagava para satisfazerem seus caprichos eróticos.
Tudo isso e muito mais é contado por Mario Vargas Llosa em A Tentação do Impossível, seu ensaio sobre Os Miseráveis, a obra maior de Victor Hugo e do romantismo francês. Publicado originalmente em 2004, o ensaio de Vargas Llosa é o testemunho de seu fascínio pela cultura francesa e pelas criações literárias caracterizadas pela ambição descomunal, pelo desejo de recriar toda a vida em seus grandes e pequenos detalhes por meio da palavra escrita.
Três ideias fundamentais fazem deste um livro fascinante. A primeira é que Os Miseráveis marca o fim do romance clássico, isto é, aquele em que o narrador participa ativamente da história dando sua opinião sobre os acontecimentos ou explicando ao leitor por que as coisas sucedem tal como sucedem. Esse narrador consciente de si mesmo desaparecerá no romance moderno, inaugurado por Gustave Flaubert com Madame Bovary, no qual ele se fundirá com os eventos narrados para perder o protagonismo humano e ganhar clarividência divina: não o veremos, mas ele estará em todas as partes determinando tudo.
A segunda ideia fundamental diz respeito à maneira como o escritor transforma a realidade em material literário. Nenhum romance digno do nome, mesmo que narre episódios reais, pretende substituir a história vivida. O romancista emprega essa matéria-prima para criar uma realidade autônoma, irreal, fictícia; um cenário no qual poderá explorar não o que ocorreu na realidade, mas os dramas humanos, os dilemas morais, as perguntas fundamentais da vida que o perturbam e obcecam, e que são o tema essencial do romance. Se a história, a sociologia e a antropologia se ocupam dos fatos reais, o conhecimento que o romance projeta tem a ver com os anseios, ilusões, desejos, paixões e frustrações que assaltam homens e mulheres em determinado momento e em determinado lugar. No caso de Os Miseráveis, esse anseio é a perfeição humana, a redenção pelo sofrimento e a luta para alcançar o infinito, para tocar a divindade.
Essa última observação nos remete à terceira ideia cardeal que Vargas Llosa ressalta em A Tentação do Impossível. Inicialmente, Os Miseráveis não foi recebido pelos críticos como a obra imortal que hoje lemos, mas como um livro terrivelmente perigoso, escrito para provocar descontentamento e insatisfação nos leitores. Nada mais delicado, dizia o escritor Alphonse de Lamartine, um desses críticos, que criar um mundo literário povoado de personagens ideais, capazes de se comportar como santos laicos ou heróis justiceiros, porque o contraste entre essa ficção e a imperfeita realidade poderia causar tamanha frustração, tamanha irritação, que despertaria o desejo imperativo de revolta contra a sociedade.
Não é casual o fato de Vargas Llosa ter explorado esse tema na obra de Victor Hugo. Não o é porque entender o papel que tem a ficção na vida humana, entender por que romances são escritos e são lidos, entender esse impulso poderoso que move ele mesmo e outros romancista a desafiar a realidade real antepondo-lhe uma realidade fictícia, foi uma das grandes obsessões do escritor peruano. E a resposta que obtemos a essa interrogação em A Tentação do Impossível é tão sugestiva como a análise pormenorizada que seu autor faz de Os Miseráveis. Criamos ficções porque, por meio delas, saímos do cárcere do real e vivemos as mil vidas que de outra forma não poderíamos viver. Ademais, como antecipou Lamartine, porque no ir e vir da ficção vemos as imperfeições do mundo real e se afina nossa consciência crítica, a ferramenta que impede que as sociedades se paralisem na resignação e na apatia. Aspirar ao impossível, como fazem Victor Hugo e, em maior ou menor grau, todos os grandes criadores de ficção, é um antídoto contra o conformismo e a indolência. Esta é a razão de ser do romance, esta é a razão pela qual há escritores – entre os quais Vargas Llosa – que põem todo seu empenho em se deixar tentar pelo impossível.
Esse ensaio literário, como os muitos outros que Vargas Llosa escreveu ao longo de sua dilatada carreira, é uma chave extremamente útil para entender sua própria concepção de romance e os temas e problemas que lhe interessa abordar em seus projetos narrativos.
Se em 1975, quando publicou um ensaio sobre Flaubert e Madame Bovary intitulado La Orgia Perpetua, ele refletia sobre o desejo individual e a possibilidade de vencer os determinismos sociais, temas que apareceriam em seus romances seguintes, em 2004, ao mergulhar em Os Miseráveis, Vargas Llosa nos revela sua paixão pelas personagens exacerbadas que desafiam a condição humana com condutas extremas e paixões inquebrantáveis. Essas personagens enfeitiçam Vargas Llosa porque, como Flora Tristán, Paul Gauguin ou Roger Casement, protagonistas de O Paraíso na Outra Esquina e O Sonho do Celta, dois de seus últimos romances, não se rendem às exigências da realidade e se empenham em viver, sem se importar com as consequências, de acordo com seus sonhos e ideais. Nesses romances aflora esse traço humano, a possibilidade de viver uma vida iluminada pela ficção ou por princípios morais inquebrantáveis. Com eles, Vargas Llosa explorou as venturas e desventuras que vivem, e os benefícios e tragédias que produzem essas personagens que vão além da realidade tentando transformar o mundo para que se pareça mais com os sonhos e fantasias tecidos pela imaginação. Isto é, o que ocorre quando alguém, cuja finalidade não é escrever romances, se nega a se render à realidade e cai sob o influxo sedutor do impossível. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK
CARLOS GRANÉS É DOUTOR EM ANTROPOLOGIA SOCIAL PELA UNIVERSIDADE COMPLUTENSE DE MADRI E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE LA IMAGINACIÓN – ANTROPOLOGIA DE LOS PROCESOS CREATIVOS: MARIO VARGAS LLOSA Y JOSÉ ALEJANDRO RESTREPO (CONSEJO SUPERIOR DEINVESTIGACIONES CIENTÍFICAS DE MADRID)
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