sábado, 27 de novembro de 2010

C. v. L. (1707 -1778)

Uma loucura diferente da nossa: a loucura de um clássico.

Claro, seco e lacónico. Naquele tempo era tudo mais pequeno.

Era quase um anão, nervoso, impaciente, rodopiante,

mas o olhar cor de âmbar sob a pesada cabeleira

era penetrante e frio: é preciso rejeitar tudo o que sejam

características acidentais. Coleccionar, definir, classificar.

Todas as parecenças obscuras foram apenas inventadas para

vergonha da ciência. Lâminas terminiológicas para extrair

o imutável da carne e de um mundo cego e trémulo.





Inventários, nomenclaturas, reportórios. A natureza,

um quadrado intemporal, uma quadrícula imóvel.

Gravuras coloridas à mão, árvores genealógicas, tabelas.

Na espuma dos fenómenos, esta linguagem não se mexe.

Uma gramática do mensurável: da espessura de um cabelo,

da fundura de um umbigo, com a forma de uma vulva,

espiralada como a concha de uma orelha. Classificando,

minuciosamente e «com sentido». Trabalhando dia e noite,

para não perder um minuto enquanto permanecesse em Upsala.





Num país pobre, no mais miserável dixhuitième:

juventude pedregosa, sem dinheiro para meias-solas, comendo

do prato alheio, uma cama sempre fria, subterfúgios

para obter títulos e táleres. Finalmente, a fuga para o inóspito.

Lá, onde quase nada mais vive, ele quase revive.





Lapónia, 1745: vi verão e inverno num só dia,

atravessei nuvens, busquei o fim do mundo,

os asilos nocturnos do Sol. No frio, floresce o seu

coração seco. Líquenes rangíferos, tundra, liberdade do Ártico.





Depois, regresso aos cortesãos, aos jardins e gabinetes.

Sonhos infernais, meditações, trevas «cheias de sentido».

Nos olhos âmbar o brilho da loucura. Estático.

Finalmente, professor, médico pessoal da rainha (a mão certa

para curar as doenças do peito), presidente da academia.

Condecorado: Estrela Polar com fita preta. Tudo tarde de mais.

Azedume, desconfiança, noites sombrias em estufas,

depois a apoplexia. Os últimos quatro anos com

paralisia parcial, numa triste fraqueza de corpo e espírito.





Ninguém sabia que ele, que tinha encontrado tantas provas

da providência divina entre as coisas naturais, há muitos anos

vinha coleccionando exemplos semelhantes nos destinos humanos;

e que também os milagres, os pecados, obedecem à taxonomia.

Mania das perseguições, alucinações. Paralelamente à histoire admirable

des plantes, a história natural de doenças e vícios:

Nemesis divina, o noctário, guardado num estojo,

cheio de premonições, augúrios, intuições, leitura para Strindberg.

Teologia empírica. O investigador como espião de Deus.





Tudo tem a sua ordem: fogo posto luxúria infanticídio traição

manha e envenenamento. Melander, professor de teologia,

tece intrigas no consistório, até que, às seis da tarde, a sua cabeça

se volta para as costas. Caí, é levado para casa, nunca mais

verá o dia da cura. Deus é um rectângulo intemporal,

a Sua retaliação uma quadrícula, imóvel: execução, fogo

defenestração cabeça cortada. A senhora Psilanderhjelm, leviana

deita-se com um cortesão em Estocolmo. Apanha uma doença do ventre,

morre em breve. Abrem-na, encontram uma pedra no lugar da criança.





E assim tudo se revela. O pecador apodrece em vida.

Um modo de vida bastante monótono. Os castigos

são coleccionados, definidos e classificados. Minuciosamente e «com sentido»,

como o mecanismo da reprodução: estame seco e pólen,

semente estilete e estigma. Systema sexualis: uma obsessão fatal.

A vida não existe; só existem seres vivos.

Cada vez mais pequeno, o grande ancião medita, imóvel,

sobre uma vingança divina que fosse lógica. «Com sentido».

Sem sentido. «Com sentido». «Nós» não fazemos parte da sua loucura.





A flor que traz o seu nome, linnaea borealis L.,

é insignificante, minúscula, e quase toda branca.







Hans Magnus Enzensberger. Mausoléu. Trad. e prefácio de João Barrento. Edições Cotovia, Lisboa, 2004., p. 73-77

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