terça-feira, 14 de setembro de 2010

Poema do homem só

Sós,

irremediavelmente sós,

como um astro perdido que arrefece.

Todos passam por nós

e ninguém nos conhece.

Os que passam e os que ficam.

Todos se desconhecem.

Os astros nada explicam:

Arrefecem.

Nesta envolvente solidão compacta,

quer se grite ou não se grite,

nenhum dar-se de dentro se refracta,

nenhum ser nós se transmite.

Quem sente o meu sentimento

sou eu só, e mais ninguém.

Quem sofre o meu sofrimento

sou eu só, e mais ninguém.

Quem estremece este meu estremecimento

sou eu só, e mais ninguém.

Dão-se os lábios, dão-se os braços,

dão-se os olhos, dão-se os dedos,

bocetas de mil segredos

dão-se em pasmados compassos;

dão-se as noites, e dão-se os dias,

dão-se aflitivas esmolas,

abrem-se e dão-se as corolas

breves das carnes macias;

dão-se os nervos, dá-se a vida,

dá-se o sangue gota a gota,

como uma braçada rota

dá-se tudo e nada fica.

Mas este íntimo secreto

que no silêncio concreto,

este oferecer-se de dentro

num esgotamento completo,

este ser-se sem disfarce,

virgem de mal e de bem,

este dar-se, este entregar-se,

descobrir-se e desflorar-se,

é nosso de mais ninguém.


António Gedeão

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