Trechos de ‘Papéis inesperados’, de Julio Cortázar
LUCAS, SEUS POEMAS ESCRITOS NA UNESCO
CALCULADORA ELETRÔNICA
Puseram os cartões perfurados
para deduzir coeficientes.
Apertaram botões e baixaram alavancas,
ela fez pfum e depois pss pss,
ronronou murmurou xerocou três minutos
vinte e cinco segundos
e depois
foi sacando uma coisa muito pequena um bracinho
com uma mão pendulante e rosa
na qual docemente balançava e rolava
uma gota salgada
HISTÓRIA DO PEQUENO ANALFABETO
Quando lhe ensinaram o A
chorou
No B
pôs o dedo no nariz
No C disse merda
No D pensou um pouco
No R
roubou o salário do pai
No T
dormiu com a irmã
No Z
conseguiu o diploma
(extraídos do capítulo “De um tal Lucas”)
***
A RESPEITO DE “O JOGO DA AMARELINHA”
Entre a minha própria visão de “O jogo da amarelinha” e a da maioria dos leitores (entendendo por maioria os jovens, muito mais sensíveis a esse livro que as pessoas da minha idade) há um curioso cruzamento de perspectivas. “Triste, solitário e final”, como diz Raymond Soriano, escrevi “O jogo da amarelinha” para mim, ou seja, para um homem de mais de quarenta anos e sua circunstância – outros homens e mulheres de mais de quarenta anos. Muito pouco depois, esse mesmo indivíduo emergiu de um mundo obstinadamente metafísico e estético, e sem renegá-lo entrou numa rota de participação histórica, de apoio a outras forças que buscavam e buscam a libertação da América Latina. Ao longo de um decênio, problemas considerados capitais em “O jogo da amarelinha” passaram a ser para mim alguns dos muitos componentes da problemática do “homem novo”; prova disso, creio, é o “Livro de Manuel”. Então, na minha visão pessoal da realidade, “O jogo da amarelinha” continua sendo uma primeira parte de alguma coisa que tentei e tento completar; uma primeira parte muito querida, certamente a mais profunda do meu ser, mas que já não aceito com a exclusividade que lhe conferiam os próprios protagonistas do livro, mergulhados em buscas nas quais o egoísmo de tanta introspecção e tanta metafísica era a única bússola.
Mas, então, surpresa: nesses dez anos de que falo, “O jogo da amarelinha” foi lido por inúmeros jovens do mundo, muitíssimos dos quais já eram parte dessa luta que eu só vim a encontrar no final. E enquanto os “velhos”, os leitores lógicos do livro, escolhiam ficar à margem, os jovens e “O jogo da amarelinha” entraram numa espécie de combate amoroso, de amarga batalha fraterna e rancorosa ao mesmo tempo, fizeram outro livro desse livro que não era conscientemente destinado a eles.
Dez anos depois, enquanto eu me distancio pouco a pouco de “O jogo da amarelinha”, uma infinidade de rapazes aparentemente chamados a estar longe dele se aproximam do risco de seus quadrados de giz e jogam a pedra em direção ao Céu. E esse céu, e isto é o que nos une, eles e eu chamamos de revolução.
(extraído do capítulo “Momentos”)
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