terça-feira, 29 de junho de 2010

Trechos de ‘Papéis inesperados’, de Julio Cortázar

LUCAS, SEUS POEMAS ESCRITOS NA UNESCO



CALCULADORA ELETRÔNICA



Puseram os cartões perfurados



para deduzir coeficientes.



Apertaram botões e baixaram alavancas,



ela fez pfum e depois pss pss,



ronronou murmurou xerocou três minutos



vinte e cinco segundos



e depois



foi sacando uma coisa muito pequena um bracinho



com uma mão pendulante e rosa



na qual docemente balançava e rolava



uma gota salgada













HISTÓRIA DO PEQUENO ANALFABETO



Quando lhe ensinaram o A



chorou



No B



pôs o dedo no nariz



No C disse merda



No D pensou um pouco



No R



roubou o salário do pai



No T



dormiu com a irmã



No Z



conseguiu o diploma



(extraídos do capítulo “De um tal Lucas”)





***





A RESPEITO DE “O JOGO DA AMARELINHA”





Entre a minha própria visão de “O jogo da amarelinha” e a da maioria dos leitores (entendendo por maioria os jovens, muito mais sensíveis a esse livro que as pessoas da minha idade) há um curioso cruzamento de perspectivas. “Triste, solitário e final”, como diz Raymond Soriano, escrevi “O jogo da amarelinha” para mim, ou seja, para um homem de mais de quarenta anos e sua circunstância – outros homens e mulheres de mais de quarenta anos. Muito pouco depois, esse mesmo indivíduo emergiu de um mundo obstinadamente metafísico e estético, e sem renegá-lo entrou numa rota de participação histórica, de apoio a outras forças que buscavam e buscam a libertação da América Latina. Ao longo de um decênio, problemas considerados capitais em “O jogo da amarelinha” passaram a ser para mim alguns dos muitos componentes da problemática do “homem novo”; prova disso, creio, é o “Livro de Manuel”. Então, na minha visão pessoal da realidade, “O jogo da amarelinha” continua sendo uma primeira parte de alguma coisa que tentei e tento completar; uma primeira parte muito querida, certamente a mais profunda do meu ser, mas que já não aceito com a exclusividade que lhe conferiam os próprios protagonistas do livro, mergulhados em buscas nas quais o egoísmo de tanta introspecção e tanta metafísica era a única bússola.



Mas, então, surpresa: nesses dez anos de que falo, “O jogo da amarelinha” foi lido por inúmeros jovens do mundo, muitíssimos dos quais já eram parte dessa luta que eu só vim a encontrar no final. E enquanto os “velhos”, os leitores lógicos do livro, escolhiam ficar à margem, os jovens e “O jogo da amarelinha” entraram numa espécie de combate amoroso, de amarga batalha fraterna e rancorosa ao mesmo tempo, fizeram outro livro desse livro que não era conscientemente destinado a eles.



Dez anos depois, enquanto eu me distancio pouco a pouco de “O jogo da amarelinha”, uma infinidade de rapazes aparentemente chamados a estar longe dele se aproximam do risco de seus quadrados de giz e jogam a pedra em direção ao Céu. E esse céu, e isto é o que nos une, eles e eu chamamos de revolução.



(extraído do capítulo “Momentos”)

Nenhum comentário: