Esta nova edição de Visão do Paraíso (1959), ao nos levar de volta a um dos temas mais fascinantes da colonização do Novo Mundo, tem a vantagem de trazer ao leitor um apêndice crítico inestimável para sua orientação frente à opulência que faz do livro de Sérgio Buarque Holanda (1902-1982) um dos mais eruditos jamais escritos no âmbito da cultura brasileira.
Não que o imaginário dos colonizadores espanhóis e portugueses, iluminado por Sérgio com o mais puro encantamento literário, reapareça agora destituído da complexidade com que o recortou para que coubesse inteiro na “biografia de uma idéia”. Nem tampouco que esse vertiginoso mergulho no passado mítico deixe de nos ser mostrado como a ressurreição de “um momento mágico” na imaginação exacerbada dos que acreditavam que o paraíso terrestre permanecia engastado no misterioso cenário do Novo Mundo.
Diante dele, quanto mais vamos sendo tragados pelos sinais dispersos da epifania do Éden, tanto mais parece adensar-se aos nossos olhos a impressão de que as verdades do mito vão derrogando a linearidade da história, vertiginosamente engolfada pelas refrações da sociologia, da antropologia, da literatura, da filosofia. E se importa reconhecer que ele foi decisivo à empresa da conquista, não importa menos assinalar que acabou incorporando às incertezas do Novo Mundo a obsessão escatológica de um imaginário que circula no tempo, contaminando as almas e enxertando certezas ao acervo de tradições divergentes.
Ao leitor não basta apenas saber que, mais eloquente no imaginário do colonizador espanhol, a trasladação dos mitos edênicos flutue dos tempos bíblicos para a cultura moderna, do humanismo para o renascimento, do passado clássico para o Siglo de Oro, juntando à simbologia das viagens a obstinação maravilhada pelo Jardim do Éden. Mais importante do que isso – e é este um dos veios mais férteis do livro de Sérgio – será discernir as razões pelas quais o exagero das “idealizações inflamadas” dos castelhanos, ao construir uma imagem positiva daquele mundo ignorado “onde parecia ganhar atualidade histórica a própria possibilidade de remissão”, jamais despertou na gente lusitana sentimentos que a levassem a identificar-se com o substrato natural e humano das terras que encontrava.
Dentre as muitas as passagens que nos surpreendem em meio ao cotejo dessas circunstâncias, há uma em que Sérgio nos lembra o “senso da maravilha e do mistério” com que os marinheiros de Colombo se valiam da sugestão metafórica para com ela estimularem a grandeza da conquista, diferentemente do que ocorreu, por exemplo, com os homens de Vasco da Gama, que, ao dobrarem o Cabo da Boa Esperança, não hesitaram em converter aquela imagem da Índia fabulosa “num imenso mercado que o grande navegador ensinará a desfrutar em nome de seu soberano”.
Não estariam aí os primeiros indícios da nossa dispersão desordenada de povo pouco afeito à planificação metódica e ao esforço coletivo do futuro, invariavelmente sacrificados ao oportunismo dos resultados?
Laura de Mello e Souza, em posfácio certeiro que amplia os modos de compreender o livro, nos lembra que Visão do Paraíso não se liga a nenhuma tradição local, fora das obras do próprio Sérgio, com ênfase para Raízes do Brasil e Capítulos de Literatura Colonial, que Antonio Candido organizou, em 1991, a pedido de Maria Amélia Buarque de Holanda, a partir de textos inéditos encontrados por ela.
Da angulação com Raízes, o que ressoa na Visão do Paraíso, nos termos de Laura, além da singularidade do enfoque, é a intenção de elucidar as relações entre trabalho e aventura, sonho e realidade, com vistas a compreender por que sempre nos deixamos perder no rastro de sonhos impossíveis, “obcecados por quimeras e fantasias”. A diferença, agora, segundo ela, é que Sérgio inverte o pressuposto de que a economia e a sociedade bastavam como explicação da existência, para nos mostrar que os portugueses fizeram uma leitura pedestre das raízes paradisíacas das nossas riquezas naturais, desfigurando assim “as frondosidades” da mítica edênica.
Mas é ao ressaltar o diálogo entre a Visão do Paraíso e os Capítulos de Literatura Colonial que a autora do posfácio recompõe a lucidez hermenêutica com que a crítica de Sérgio soube nos mostrar que “por baixo do aparentemente moderno ou novo, irrompia o antigo”, como o atestam, por exemplo, os modelos quinhentistas da lírica de Cláudio Manuel da Costa e a dicção camoniana da épica de Santa Rita Durão.
Mais ou menos na linha definida por Antonio Candido, quando tratou da contribuição decisiva dos árcades para a formação da vida intelectual e artística no Brasil, o que marca a atitude crítica de Sérgio Buarque de Holanda é a incorporação por si mesma da nossa realidade intelectual e artística – vista por ele como a expressão conjunta das “disciplinas mentais” que nos elevassem a um plano compatível com a vida civilizada.
Alegorias. Daí não podermos desvincular aquela visão conservadora da forma mentis portuguesa, que Sérgio definiu na Visão do Paraíso como parcialmente avessa à modernização renascentista, da necessidade de compreendê-la na continuidade vertical dos estilos no tempo, longe da visão linear que a amarrava à divisão estanque dos períodos, como bem viu Antonio Candido na Introdução aos Capítulos de Literatura Colonial. É assim que, no Boosco Deleitoso, por exemplo, o verde da paisagem dos trópicos – que inundava a imaginação europeia com os motivos paradisíacos da eterna primavera – converte-se em fonte inesgotável de alegorias sagradas indispensáveis ao bom sucesso da conquista, provendo-a de uma “direção espiritual superior e redentora”, em tudo oposta ao caráter destruidor e desumano que a movia. Até as aves – nos diz Sérgio – desvestiram-se dos indumentos simbólicos de sublimidade para figurar no orbe religioso do sagrado, encarnando os santos doutores tão decisivos naquela saga assombrosa pelas terras ignotas do Novo Mundo.
Tais aspectos nos mostram não apenas o quanto a crítica de Sérgio contribuiu para marcar a singularidade do universo cultural português frente às demais vertentes do pensamento europeu. Se, de um lado, isso nos permite atenuar em muito a índole integradora da velha critica, que tendia sempre a fechar num único paradigma o bloco da cultura e do pensamento ocidental como um todo; de outro, nos mostra o quanto as particularidades da mentalidade portuguesa se desviavam dos padrões da época, abrindo uma série de dissonâncias valiosas para um apreciação crítica das nossas próprias singularidades.
ANTONIO ARNONI PRADO, ENSAÍSTA E PROFESSOR DE LITERATURA NA UNICAMP, É AUTOR, ENTRE OUTROS, DE TRINCHEIRA, PALCO E LETRAS (COSAC NAIFY) E ITINERÁRIO DE UMA FALSA VANGUARDA (EDITORA 34)
ANTONIO ARNONI PRADO.O Estado de São Paulo.26/06/2010
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