Cortázar inesperado e fundamental
Cassiano Viana, especial para O GLOBO*
Papéis inesperados, de Julio Cortázar. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. Editora Civilização Brasileira, 490 páginas. R$ 62,90
Aviso ao leitor: “Papéis inesperados”, que está chegando nesta sexta-feira às livrarias do país pela Editora Civilização Brasileira é, com toda certeza, a obra mais importante de Julio Cortázar lançada aqui desde sua morte, no dia 12 de fevereiro de 1984. Afinal, são inesperadas 450 páginas, com 11 novos (e bons) contos; três histórias que ficaram de fora de “Histórias de Cronópios e de Famas” (“Trânsito”, “Almoços” e “Never stop the press”); 11 novos episódios do divertido e ultrapessoal “Um tal Lucas”; notas introdutórias do célebre capítulo 126, ponto de partida de “O jogo da Amarelinha”, suprimido do romance pelo próprio Cortázar; um outro retirado de “O livro de Manuel”; um bom número de poemas; e as famosas “Entrevistas diante do espelho” — autoentrevistas onde Cortázar, bem ao estilo Truman Capote, faz o papel de entrevistador e entrevistado. Tudo isso e mais o raríssimo texto enviado pelo autor à revista “Life”, em 1968 e dois trechos especialmente curiosos para o leitor brasileiro.
Há também espaço para textos que percorrem outros territórios, como um patriótico “Discurso do Dia da Independência” e “Essência e missão do professor”, ambos do final da década de 30, quando Cortázar ainda era professor na Argentina; declarações de amor a Paris (“Paris, último primeiro encontro”), bem como o discurso de Cortázar ao receber, em 1981, a cidadania francesa. Além de discursos feitos na Comissão Internacional de Investigação dos Crimes da Junta Militar no Chile e no Tribunal Bertrand Russell, e/ou publicados em veículos como o francês “Le Monde”, onde salta a veia política do autor comprometido com a Revolução Cubana e com a luta em defesa dos direitos humanos na América Latina — lembre-se, leitor, boa parte da obra de Cortázar foi escrita no período das ditaduras.
Nessas páginas inesperadas, Cortázar recorda também seu encontro com Samuel Beckett e a amizade com o poeta cubano José Lezama Lima e Pablo Neruda, dentre outros.
Para uns, a possibilidade de redescoberta; para novos leitores, uma passagem ideal para o universo cortazariano. Levando em consideração que o livro reúne textos de diversas épocas e gêneros — escritos entre 1930, logo, anteriores a “La otra orilla”, primeiro volume de contos do autor, ainda inédito no Brasil, quando Cortázar ainda vivia em Buenos Aires, e 1984 — “Papéis inesperados” é também a possibilidade de o leitor acompanhar a formação de um grande escritor. Afinal, como lembra em seu prólogo o editor e co-organizador da obra Carles Álvarez Garriga (leia entrevista na edição digital do Segundo Caderno, exclusivamente para assinantes), citando o famoso ensaio “Cortázar e a bofetada metafísica”, do chileno Luis Harss, Cortázar não foi sempre o que é, e como chegou a sê-lo é um problema misterioso e desconcertante.
“Papéis inesperados” é muito mais do que um caça-níquel que aproveita sobras do “fundo de gaveta” do autor. É realmente um bom livro, significativo para o leitor brasileiro fã do autor de “O Jogo da Amarelinha“, “Bestiário”, “Octaedro” e “As armas secretas”, para ficarmos entre os mais conhecidos.
Publicado em 2009, 25 anos após a morte de Cortázar, o livro reúne o material encontrado em Paris, na residência onde o escritor escreveu “O Jogo da Amarelinha” — e onde vive hoje Aurora Bernárdez, sua herdeira e co-organizadora da obra —, em um armário em que havia de tudo: romances e contos inéditos, contas de luz, anotações e todo o material compilado em “Papéis inesperados”.
Se contasse com fotos e desenhos, o livro poderia se juntar a “A volta ao dia em oitenta mundos” e “Último round”, os famosos volumes de livros-almanaques de Cortázar, lançados pela Civilização Brasileira em 2009.
A tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht — isto é importantíssimo, prezado leitor — é sempre muito bem-vinda e pela primeira vez encontramos alguma informação à guisa do reconhecimento ao trabalho do tradutor em notas no final do livro. Tradutores de obras de Lacan, Camus, Vargas Llosa, dentre outros, ambos já haviam trazido para o português boa parte da obra cortazariana, de “Os reis” a “A volta ao dia em oitenta mundos” e “Último round”.
De relevante, faltam agora chegar ao leitor brasileiro o primeiro livro de contos, “La otra orilla”, de 1945; os três tomos de correspondência publicados em 2004 pela Alfaguara; e o livro de poemas “Salvo El crepúsculo”, de 1984. Sem dúvida vão continuar aparecendo novos textos inesperados porque, como lembra Garriga, citando Borges, “edição definitiva” é um conceito que só corresponde à teologia ou ao cansaço.
Pelo menos dois textos de “Papéis inesperados” são curiosos para o leitor brasileiro: “Para uma imagen de Cley”, publicado no jornal mexicano “El sol”, em maio de 1977, e “A ‘Veja’ interessa saber…”, de 1982, ao que tudo indica uma carta em resposta à revista brasileira, pouco tempo depois que o governo francês outorgou uma esperada cidadania francesa ao escritor.
Dois dois textos, o principal é o que foi escrito em homenagem ao escritor, dramaturgo e poeta brasileiro Clay Gama de Carvalho, que havia se suicidado poucos meses antes. Cortázar e Clay mantiveram durante anos uma amizade de telefonemas e cartas. Clay havia ciceroneado Cortázar e a lituana Ugné Karvelis, sua companheira na época, em 1973, durante uma das passagens do escritor pelo Brasil, e levado o casal até o último andar do edifício Itália, em São Paulo, indo depois à casa do poeta Haroldo de Campos. Para além da admiração a escritores como Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade e de uma forte ligação com o Brasil e com a música brasileira — especialmente a de Caetano Veloso, Gal Costa e Bethânia — Cortázar, que veio duas vezes ao país, foi amigo dos irmãos Campos e de intelectuais como Boris Schnaiderman e Davi Arrigucci Jr. (este último autor de “O escorpião encalacrado”, um dos principais estudos sobre a obra de Cortázar).
No texto sobre Clay, Cortázar elogia a peça “Cromossomos”, encenada no Teatro de Arena, em 1972, comparando-a com as pinturas de Francis Bacon. “Como sempre, nos víamos pouco; para mim foram anos de viagens contínuas e apenas de vez em quando chegava para mim uma mensagem de Cley, seu ‘Tudo bem’, que me deixava insatisfeito e me obrigava a pensar na canção de Caetano Veloso na qual terrivelmente se diz: ‘Meu amor, todo o mundo está deserto, tudo certo, tudo certo como dois e dois são cinco”, escreve Cortázar. Vale lembrar a anedota: Cortázar brincava perguntando se alguém alguma vez teria visto Caetano e Maria Bethania juntos. “Óbvio que não: são a mesma pessoa”.
CASSIANO VIANA é jornalista, escritor e tradutor
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