Rios de lava lavam com fogo liquido meus amanheceres.
Wilson Roberto Nogueira
sexta-feira, 29 de novembro de 2019
como se nasce e como se morre de fascismo
Umberto Eco, como se nasce e como se morre de fascismo
REVISTA IHU ON-LINE
Cultura Pop. Na dobra do óbvio, a emergência de um mundo
complexo
Edição: 545
17 Janeiro 2018
O fascismo é como a tuberculose. A pessoa tem uma aparência
saudável e, de repente, começa a expelir sangue. Isso é o que sabe e o que
conta Umberto Eco em Il Fascismo eterno - La nave di Teseo, (O Fascismo Eterno,
O Navio de Teseu), utilizando materiais de um evento que organizamos juntos na
Columbia University.
Naquela época (1995) eu estava ensinando na universidade e
era o diretor do Instituto Italiano de Cultura. A intenção era celebrar pela
primeira vez, publicamente, a data de 25 de abril nos Estados Unidos (Festa da
Libertação, ndt). Os protagonistas eram, além de Eco, Giorgio Strehler, o
lendário diretor de Brecht no Piccolo Teatro de Milão e Lucianio Rebay,
comandante da resistência na juventude e professor de poesia na Universidade de
Columbia pelo resto de sua vida. Strehler e Rebay falaram sobre resistência e
prisões, traidores e heróis na Milão do último fascismo.
A reportagem é de De Furio Colombo, publicada por Fatto
Quotidiano, 15-01-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
O fascismo é como a tuberculose. A pessoa tem uma aparência
saudável e, de repente, começa a expelir sangue. Isso é o que sabe e o que
conta Umberto Eco em Il Fascismo eterno - La nave di Teseo
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Eco narra neste livro como se nasce e como se morre de
fascismo. Eis aqui o começo: "Em 1942, aos 10 anos, ganhei um prêmio
respondendo a uma pergunta ‘Deveríamos morrer pela glória de Mussolini?’. Minha
resposta foi sim. Eu era um menino esperto".
Eco escolheu um extraordinário fragmento de autobiografia
que, no final, você percebe, torna-se toda a sua autobiografia, claro que do
ponto de vista moral e intelectual: o que entende uma criança de fascismo? Que
legado fica para um adulto depois de um encontro tão assustador? E como você
pode se comprometer para sempre em defender a liberdade, quando percebe que o
pesadelo não acaba?
"O fascismo cresce e busca consenso explorando e
exacerbando o medo natural de diferença”
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Umberto Eco não viu os fascistas de Como, que entraram em
uma casa particular, que circundaram um grupo de voluntários pró-migrantes para
ler sua mensagem. Mas era escritor e filósofo, e sabia que aquele perigo estava
por vir. "Na Itália, algumas pessoas se questionam se a resistência teve
um impacto militar. Para a minha geração a questão era irrelevante: logo
percebemos o significado moral e psicológico da Resistência", Eco escreve
em seu livro, que é imprescindível ter e difundir.
"Que este seja o nosso lema: jamais esquecer”
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Mas reflete sobre essas afirmações, escrevendo no final:
"O fascismo cresce e busca consenso explorando e exacerbando o medo
natural de diferença. O primeiro apelo de um movimento fascista ou
prematuramente fascista é contra os intrusos. Todo fascismo, portanto, é
racista por definição".
Essas poucas páginas são um dos livros mais belos e mais
importantes de Eco. Ele termina com uma maravilhosa poesia de Fortini ("No
parapeito da ponte / as cabeças dos enforcados ....") e com sua
advertência: "Que este seja o nosso lema: jamais esquecer".
O perigo real é o retorno do fascismo”
Entrevista com o
filósofo Rob Riemen
REVISTA IHU ON-LINE
28 Outubro 2017
“No momento, negamo-nos a ver o retorno do fascismo.
Dizem-me que falo dos perigos do populismo. Não é assim. O populismo é como os
mosquitos, um pouco irritantes. O perigo real é o retorno do fascismo. O
fascismo é o cultivo político de nossos piores sentimentos irracionais: o
ressentimento, o ódio, a xenofobia, o desejo de poder e o medo. Não deveríamos
confundir os dois conceitos. Devemos chamar o fascismo por seu nome”, afirma
Rob Riemen (Países Baixos, 1962), ensaísta, filósofo e diretor do prestigiado
Nexus Institute.
Riemen esteve recentemente no México para apresentar a obra
Para combatir esta era. Consideraciones urgentes sobre el fascismo y el
humanismo (Taurus, 2017), uma poderosa alegação em favor do humanismo como
antídoto contra o renascimento do fascismo. Concedeu-nos esta entrevista em uma
manhã nublada, como nosso tempo.
A entrevista é de Laura Emilia Pacheco e Fernando García
Ramírez, publicada por Letras Libres, 21-10-2017. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Em seu primeiro livro, retoma o ideal democrático de Thomas
Mann da “nobreza de espírito”. A nobreza de espírito, que é individual, pode se
opor ao avanço do fascismo, um movimento da sociedade de massas?
Em 1947, enquanto trabalhava em Doutor Fausto, Mann escreveu
sua conferência A filosofia de Nietzsche à luz de nossa experiência. Nela dizia
que nenhuma medida técnica, instituição política, nem ideia de governo mundial
conseguiria avançar para uma nova ordem social sem que antes se desenvolvesse
um clima espiritual alternativo. Para Mann, a única forma de deter os avanços
do fascismo era mediante a nobreza de espírito. Concordo.
O fascismo nasceu no interior da sociedade. A ignorância da
sociedade de massas é também uma ignorância dos valores espirituais e morais. O
fascismo surge neste contexto. Como afirmo em Para combatir esta era: apesar do
progresso científico e tecnológico e do enorme acesso à informação, a força
dominante de nossa sociedade é a estupidez organizada. Não se detém o fascismo
através da economia, da tecnologia ou da ciência, nem sequer através das
instituições – porque dependem das pessoas que as formam -, mas, sim, com uma
mentalidade distinta. Mann, Camus, Sócrates e muitos outros pensadores
advertiram que a “nobreza de espírito” é um dos ideais mais democráticos que
existem. Para cultivá-la não é necessário dinheiro, ser tecnologicamente
habituado ou ter um título universitário. A nobreza de espírito é uma
mentalidade, é saber do que se trata a dignidade humana.
'Para combatir esta era'
é um chamado às elites políticas, econômicas, acadêmicas e intelectuais.
Elites que, no entanto, parecem estar atravessando uma crise. Afirma que
“geraram o vazio espiritual no qual o fascismo pode crescer outra vez”.
Enfrentamos dois problemas diferentes. O primeiro é o tipo
de elites dominantes em nossa sociedade. As elites políticas, econômicas e
midiáticas são as que têm mais poder e influência. São definidas e validadas
pela quantidade, não pela qualidade. No mundo da cultura, não obstante, o
conceito tem um significado distinto: a elite expressa a qualidade. Pensemos na
União Soviética de Stalin: de um lado, estavam as elites do poder, os
dirigentes do partido e, como contrapeso, uma minúscula elite moral
representada por [Boris] Pasternak, [Osip] Mandelstam, [Anna] Akhmátova e,
posteriormente, [Joseph] Brodsky. Uma das coisas que ocorre em nossa era do
capitalismo rampante é que a única elite que reconhecemos é a do poder, que só
expressa quantidade. O fato de as elites intelectuais e artísticas estarem
marginalizadas reflete que os mais altos valores da sociedade atual são os do
comércio e da tecnologia. É indispensável fazer um chamado às elites, incluindo
a elite acadêmica: tem uma posição privilegiada que acarreta uma
responsabilidade que não estão aceitando. Teriam que ser combatentes contra
esta era.
Parte do fenômeno ao qual enfrentamos hoje foi retratado por
Hermann Broch no terceiro volume de Os sonâmbulos, onde analisa o declive dos
valores. Para Broch, não é que já não existam valores, mas, ao contrário, em consequência
de já não existir um valor universal e transcendental, todos os valores se
fragmentam e se tornam pequenos. À classe política só interessa o poder, à
classe militar só interessa ter mais armas, aos médicos só interessa ter mais
remédios, ao mundo tecnológico só interessa desenvolver mais tecnologia. Já não
existe um sentido de responsabilidade geral. E não só isso: esses grupos não
falam o mesmo idioma, não se comunicam, não existe um diálogo entre eles.
Em seu romance O homem sem qualidades, Robert Musil coloca
esses grupos – generais, empresários, intelectuais e aristocratas – em
conversa. Para Musil, eles se reúnem porque estão em busca da “grande ideia”. É
uma bela metáfora que Musil retoma de Os demônios de Dostoievski. Perdemos a
“grande ideia”. Em termos mais acadêmicos, diríamos que perdemos o grande
relato. As consequências sociológicas dessa ausência são imensas. Na Idade
Média, por exemplo, as pessoas faziam parte de uma grande ideia única. Isso se
acabou, por bons motivos, mas agora temos uma sociedade completamente
fragmentada, individualizada, com uma classe governante que perdeu o sentido
comum ou o bom sentido, e não temos um governo que queira velar pelo bem comum.
Contribuiu para a deflagração da Segunda Guerra Mundial o
fato das elites ficarem em um processo de sonambulismo, adormecidas. Está
ocorrendo novamente. Para Hermann Broch, o sonâmbulo se nega a ver a tormenta.
No momento, negamo-nos a ver o retorno do fascismo. Dizem-me que falo dos
perigos do populismo. Não é assim. O populismo é como os mosquitos, um pouco
irritantes. O perigo real é o retorno do fascismo. O fascismo é o cultivo
político de nossos piores sentimentos irracionais: o ressentimento, o ódio, a
xenofobia, o desejo de poder e o medo. Não deveríamos confundir os dois
conceitos. Devemos chamar o fascismo por seu nome.
Ao que se deve que a sociedade negue a assumir que o
fascismo está de volta?
Ao embaraço de políticos e acadêmicos. Ao menos é o que
acontece no Ocidente. Adverti isto, há alguns anos, quando publiquei nos Países
Baixos O eterno retorno do fascismo, o primeiro ensaio de Para combatir esta
era. Recebi um tsunami de respostas negativas. Nos jornais, apareciam artigos
enfurecidos, assinados por políticos, que diziam que eu deveria me sentir
envergonhado. Os acadêmicos também se irritaram porque eu disse que na academia
se dedicam a escrever notas de rodapé, ao invés de se envolver politicamente.
Não me permitiram dizer que o deputado neerlandês Geert Wilders é um fascista.
Aceitar o retorno do fascismo representa um problema para
alguns pensadores progressistas, pois significa que nossa sociedade tem
fantasmas que se negam a morrer. Embora há exceções, os acadêmicos em geral não
sabem nada. O problema fundamental que está atingindo a academia é a confusão
entre a ciência e a verdade. Sabemos a respeito da brilhante ideia que teve
Descartes ao separar a alma do corpo. Foi a partir desta nova ideia que pudemos
fazer descobertas científicas. Mas, tempo depois, em 1725, Giambattista Vico
advertiu que, apesar da grande admiração que tinha por Descartes, não devíamos
cometer o erro de pensar que o paradigma científico – mesmo que adequado para
explicar o que ocorre na natureza – nos faria compreender o ser humano e sua
sociedade, porque somos uma espécie espiritual.
Nossos sentimentos e emoções vão além do paradigma
científico. Os acadêmicos, no entanto, se negaram a escutar a advertência de Vico,
ou a esqueceram. Constantemente, as humanidades têm que provar que são
científicas e lhes impõem a necessidade de inventar teorias. Simon Schama
explicou que a história é composta por uma série de relatos, mas são poucos os
historiadores que contam algo. Tudo são teorias. Isto se aplica também para a
psicologia e a sociologia. Existe um mal-entendido no campo das humanidades e
com sorte um dia nos darão mais conhecimentos que dados. Ao não compreender,
não fazem parte do debate público. Como não há evidência empírica de que
enfrentamos o fascismo, negam-se a pensar que está de volta.
Enfrentamos um novo gnosticismo e quem o cultiva é
essencialmente a esquerda: “as pessoas” se sentem traídas, “as pessoas” não
sabem o que fazer. Em certo sentido, isto é tão antidemocrático como o
fascismo. Eis, aqui, onde estamos atolados. O que não temos é um “humanismo
cívico”. O que a sociedade perdeu é a noção de humanismo no discurso cívico.
Isso é algo que devemos recuperar o quanto antes, porque, caso contrário, nos
dirigimos ao desastre.
Mas, não há somente ciências da natureza, também existem a
ciência política e a ciência econômica. Ou seja, a quantificação de elementos
econômicos e políticos de um ponto de vista científico.
Se a economia fosse uma ciência, por que não conseguiu
prever a crise econômica de 2008 ou a enfrentar? A ciência política se reduz só
a dados e não contribui em nada. Ao querer se concentrar neste paradigma, a
ciência se limita. O argumento de Giambattista Vico é que se queremos compreender
o ser humano e entender a sociedade, precisamos de história, poesia, filosofia,
música e arte. Isto nos dará um conhecimento absoluto? Não, porque o ser humano
transcende o conhecimento absoluto.
Pensa-se que falar de alma e espírito humano é antiquado. Se
isso é correto, perdemos o rumo. Qual é a essência do ser humano? Sócrates diz
que é a alma. Em suas Disputaciones tusculanas, Marco Tulio Cícero escreveu sua
famosa sentença de onde provém nossa noção de cultura: “o cultivo da alma, isso
é a filosofia”. E, certamente, junto à filosofia, perdemos a busca da
sabedoria, o cultivo da alma. De modo que não deve nos surpreender o tipo de
mundo em que vivemos.
Não sou contra a informação e os fatos, mas não
necessariamente são conhecimento, nem sabedoria. Os poetas e os artistas dizem
que a linguagem é como um espelho que nos diz se somos autênticos. Ao final de
Apologia, Sócrates adverte que, sem a linguagem das musas, sem a linguagem da
música, da poesia e da arte, seria impossível nos expressar; seria impossível
compreender nossos sentimentos e lidar com nossas frustrações, temores e
solidão. Por isso, é importante ter essa linguagem que – como já disse [Marcel]
Proust – é o que nos permite entender o outro. Nunca seremos capazes de
apreciar e articular nossas experiências mais profundas sem a linguagem das
musas.
As sociedades que estão dominadas pelo medo são propensas ao
contágio do populismo, mas o medo é inevitável em sociedades como as nossas,
assediadas pelo terrorismo e a violência do narcotráfico.
Não são as sociedades, somos nós mesmos. Nossa psique está
invadida pelo temor: somos a única espécie que tem consciência de sua
mortalidade. O temor é um sentimento inerente ao ser humano. Mais que de uma
educação ou de uma filosofia, Sócrates falava de uma Paideia: de como viver a
vida. Um de seus elementos é como lidar com nossos temores. Perdemos os
instrumentos que nos permitem fazer isso. Por que sociedades são tão inseguras?
Por que dependem tanto de psiquiatras? Por que depositamos nosso sentido de bem-estar
e confiança nos bancos, nas companhias de seguros e nos sistemas de pensões? Em
parte, é porque nossa sociedade se tornou muito mais materialista e acreditamos
que as seguradoras irão cuidar de nós. Para que devo cultivar minhas
habilidades ou certo caráter se, enquanto minha conta de banco estiver boa,
estarei bem? Sócrates pensava que o valor é a habilidade de se conquistar a si
mesmo, o valor para cultivar nossa alma, e queria que recebêssemos uma educação
que nos tornasse corajosos, conquistar nossos temores, frustrações,
inseguranças de modo que tenhamos a coragem para agir.
Imaginemos uma sociedade na qual nos déssemos conta de que a
autêntica segurança não deveria vir de nossa conta bancária, mas de nós mesmos.
Imaginemos uma sociedade na qual, em verdade, tratássemos de nos educar para
sermos corajosos. É a única maneira de se opor ao que está ocorrendo. Isto não
significa que não haverá mais tragédias, mas como sociedade seríamos muito mais
fortes.
Afirma que o medo leva os povos a buscar um líder que os
salve e proteja. Sua advertência de que o fascismo está de volta, não é uma
forma de provocar medo nas elites?
Ao falar de elites nos referimos à elite do poder. Isso já
acontece nos Estados Unidos, onde a classe que compõe os financistas de Wall
Street está em ascensão. É exatamente o que ocorreu na Alemanha nazista por
falta de cálculo, oportunismo e pensamento estratégico: as elites – não só as
elites do poder, mas também muitos acadêmicos e intelectuais – pensavam que
Hitler não podia ser tão mau. Enquanto o líder fascista se dedica a seus
próprios interesses, parece que não importa para ninguém. Chegado o momento, se
as coisas se colocam muito mal em um regime totalitário, não há possibilidade
de erguer a voz. Por que as pessoas precisam tanto da figura de um líder? Por
que a sociedade anseia um herói? Os heróis atuais são as celebridades. Sabemos
que Trump pôde chegar à Casa Branca graças ao fato de que, durante doze anos,
apareceu constantemente na televisão. Assim, de forma grande, é a fome de
líderes, heróis, gurus e messias. É por este motivo que procuro fazer uma
defesa do humanismo. Se alguém é suficientemente afortunado na vida, encontra
um mestre: um homem ou uma mulher que possa o ensinar a desenvolver suas
habilidades e talento. A humanidade pode ser dividida entre as pessoas que
precisam de um mestre e o procuram e as pessoas que não o procuram, mas estão
impressionadas com o líder poderoso ao qual podem se submeter.
Dostoievski disse isso com grande eloquência em O Grande Inquisidor.
Nele, apresenta a Jesus Cristo não como um líder poderoso, nem como herói.
Apresenta-o como um mestre. Um mestre, além do mais, que não traz boas
notícias. A má nova é que Jesus Cristo não está aqui para nos fazer felizes,
mas, ao contrário, para nos tornar livres. Precisamos de um mestre quando
queremos desenvolver a qualidade de ser livres. Precisamos de um líder ou uma
celebridade quando queremos ser felizes.
Na França e nos Países Baixos, os candidatos com discursos
fascistas perderam as eleições. O fascismo foi detido na Europa?
Nos Países Baixos não detivemos o fascismo. Geert Wilders é
líder do atual segundo partido mais importante e principal opositor do partido
no governo. Isto significa que no debate parlamentar ele é o primeiro a falar.
Pode dizer o que quiser, sem nenhum tipo de responsabilidade. Por outro lado, o
vencedor da eleição, Mark Rutte, publicou uma carta aberta em todos os jornais
holandeses intitulada Ser normal. Aí diz que, como holandeses, damos as
boas-vindas a todos sempre e quando se comportarem de uma maneira “normal”,
como o restante dos cidadãos neerlandeses. Vá! Ser normal significa que você
deve ser igual ao outro. Não posso pensar em um argumento mais racista e
xenófobo. Pouco depois, o líder do partido Apelo Democrata-Cristão disse que
todos em meu país devem saber o hino nacional de cor e que cada vez que seja
escutado, devemos ficar em pé e colocar a mão sobre o coração. Querem criar
instrumentos para nos fazer todos “normais”.
Na França, por outro lado, Macron teve muita sorte. É jovem
e tem pouca experiência. Em geral, a votação parlamentar é de 70 a 80%. Ele só
obteve 48%. Caminha em um terreno sensível e está em uma posição muito mais
complicada que a de Obama quando venceu a presidência em 2008, e já vimos o que
ocorreu após os oito anos de seu governo. De modo que não nos enganemos
pensando que, de repente, sem tomar nenhuma iniciativa real, detivemos o
fascismo. A União Europeia se encontra em um momento muito delicado. É tão
disfuncional que, na Hungria, não pode enfrentar a Viktor Orbán, um fascista
absoluto. Também sabemos o que aconteceu no Reino Unido e na Polônia. As forças
que querem destruir a Europa são inegáveis.
Qual é a pertinência de 'Para combater esta era'?
Sem Trump o livro não teria aparecido em espanhol, nem em
outros idiomas. No caso de Trump, não acredito que haja um processo de
destituição. Se chegasse a ocorrer, não esqueçamos o que disseram Levi, Mann e
Camus, após a destruição da Alemanha de Hitler e o desmoronamento do fascismo
na Itália: não cometamos o erro de pensar que o fascismo desapareceu com a
guerra. Após a guerra, Camus publicou A Peste para deixar assentado esta
mensagem. Podem passar dez ou cinquenta anos, mas o fascismo reaparecerá. Está
acontecendo, agora, com Trump e Erdogan. Mas, mesmo se eles se forem, o
fascismo permanecerá.
Em 1929, José Ortega y Gasset nos advertiu, em 'A rebelião
das massas', sobre a ascensão do fascismo. As sociedades livres lutaram contra
as nações fascistas pela liberdade. Os líderes que enfrentaram o fascismo –
Estados Unidos e o Reino Unidos –, hoje, possuem um governo populista. Que
caminho tomar?
Os Estados Unidos não têm um governo fascista, mas, sim, um
presidente que é. Este é um exemplo de que a liberdade e a democracia não podem
se dar por assentadas. Talvez devamos dar um salto muito mais extenso e
entender que o modelo de Estado-nação é relativamente novo em nossa história,
que como modelo tem dificuldades, e que isso abre o espaço para o surgimento do
nacionalismo. A partir deste cenário, pode crescer o fascismo. Não há fascismo
ou racismo sem nacionalismo.
No final dos anos 1930, Thomas Mann, Hermann Broch e alguns
intelectuais estadunidenses como Robert Maynard Hutchins – que então era o
reitor da Universidade de Chicago – se reuniram a pedido de Elisabeth Mann
Borgese e seu esposo, o escritor Giuseppe Borgese, um dos poucos intelectuais
italianos que se negou a fazer o juramento de lealdade a Mussolini e se exilou
nos Estados Unidos. Em 1938, Borgese pensou que a guerra era inevitável e que
deviam vencê-la. Pensava que, após a guerra, os políticos estariam muito
agoniados, sendo assim, os intelectuais tinham que sair da torre de marfim e
escrever algum tipo de material a partir do qual poderiam se estabelecer novos
princípios.
O grupo se reuniu algumas vezes em Atlanta, em 1939, pouco
antes da guerra. Em março de 1940, publicaram The city of man. A declaration on
world democracy, onde se perguntavam: o que precisamos fazer após a Guerra?
Eles mesmos responderam: um governo mundial, um parlamento mundial, direitos
humanos universais. A partir deste pequeno livro nasceu a ONU.
Cabe a nós, intelectuais - gente privilegiada que podemos
viver cuidando de ideias e do significado das palavras -, unir-nos, explicar o
que ocorre e como avançar. Estamos atolados entre dois paradigmas que não nos
permitem avançar. Nossa conversa girou em torno do paradigma do retorno do
fascismo. Contudo, há outro paradigma com o qual estamos lidando: a sociedade
capitalista-científica-tecnológica que se rege pelo tipo de ideologia que vem
do Vale do Silício. Uma ideologia que se baseia na falsa noção de que com a
tecnologia e a neurociência podemos resolver tudo. Como dizia Obama com
frequência: Fix it first. Isso tampouco nos permitirá avançar. Isto abebera o
fato de que não há ideias. Tive um debate acalorado com um professor que dizia
que para se ter uma Europa unida era necessário retornar à Idade Média, sob a
forma da cristandade. A saída não está em um retorno ao passado.
Celan, Brodsky, Pasternak e muitos outros exerceram a arte
da tradução. Por que Thomas Mann escreveu José e seus irmãos? Começou a
escreveu sua tetralogia quando se deu conta de que existia um homem chamado
Adolf Hitler. Mann, que vivia em Munique, escutou a retórica de Hitler,
compreendeu sua ideologia e percebeu que queira criar uma nova religião laica.
Sendo assim, começou a escrever seu livro. Tomou a Bíblia e se propôs voltar a
contar – a traduzir – a história de José e seus irmãos.
Paul Celan – depois que os nazistas o cercaram junto com sua
família em um gueto, enviaram seus pais para um campo de extermínio, onde
assassinariam sua mãe e morreria seu pai, e o mandaram para um campo de
trabalhos forçados, de onde finalmente foi libertado – teve que traduzir.
O grande relato que esperamos, o tipo de história que
precisamos ter para que renasça o humanismo laico ou religioso será,
justamente, um que volte a contar histórias; será uma tradução, como o Renascimento
foi uma tradução. Goethe disse que a verdade já existe, a única coisa que
precisamos fazer é repeti-la e traduzi-la. Daí minha rejeição aos acadêmicos.
Não estão fazendo seu trabalho. Por outro lado, a cada dia admiro mais Andrei
Tarkovski, porque com seus filmes conseguiu traduzir valores fundamentais em
histórias. A noção de sacrifício, que pertence ao mundo da religião, ele a
traduziu em um relato claro. Todos os meus heróis são tradutores. Empreenderam
a tarefa de transmitir ou traduzir valores, as coisas que na verdade importam,
para nos dar uma visão do mundo que protegesse a noção do que é uma civilização
democrática. Se não somos capazes de fazer isto, estamos perdidos.
Qual a sua opinião da reação que Trump gerou dentro dos
Estados Unidos?
Não podemos aceitar o que ocorre. Trump não venceu no voto
popular. Muita gente compreende o que ocorre. Hillary disse que agora faz parte
da “resistência”, algo que me causa certo mal-estar, pois do lado do mundo do
qual venho as pessoas que pertenciam à resistência arriscaram sua vida para
lutar contra os nazistas. Neste momento, não há um só estadunidense cuja vida
corra perigo, de modo que seria melhor dizer que se é parte da oposição.
Recortemos este fato: aquilo que é possível nos Estados Unidos resulta
impossível na Rússia. Este tipo de oposição faria com que, na Rússia ou na
China, você fosse executado de imediato. Ainda há certa liberdade na Hungria,
embora a cada dia se torna mais difícil pertencer à oposição. Se Trump consegue
aumentar sua base de seguidores, segue propagando notícias falsas e continua
com sua política para com os meios de comunicação, para que as pessoas prefiram
abrir seu Facebook ao invés de ler o Washington Post, estaremos em uma situação
vulnerável. No pior dos casos, será reeleito por um segundo período. Não é
impossível.
Seu livro é uma defesa dos valores espirituais absolutos.
Não é uma aspiração muito elevada neste momento de emergência?
É uma aspiração elevada procurar o amor de sua vida? É uma
aspiração muito elevada necessitar da amizade? É uma aspiração muito elevada
sentir a necessidade de perseguir nossas paixões, de fazer algo que tenha algum
significado? As coisas das quais falo não são moralistas, abstratas ou
poéticas, são as coisas que estão no centro do ser humano. É uma aspiração
muito elevada confiar em seus amigos e não se sentir traído? Estas são as
coisas das quais falo. Tudo se tornou difícil e complicado porque o ser humano
não só aspira, como também sente medo e frustração. Na realidade, falo de
coisas muito básicas.
“Os Estados Unidos estão afundando no desastre o berço da civilização”
Os Estados Unidos estão afundando no desastre o berço da civilização” , afirma Noam Chomsky
REVISTA IHU ON-LINE
Por: Jonas | 10 Setembro 2014
Os Estados Unidos estão afundando no caos o berço da
civilização, afirma o analista político Noam Chomsky, em um recente artigo no
qual descreve a propagação da “praga do Estado Islâmico”.
A reportagem é publicada por Rebelión, 09-09-2014. A
tradução é do Cepat.
O célebre linguista recorda, a partir de um artigo publicado
no portal Alternet, que a era na região do Crescente Fértil, também conhecida
como ‘meia-lua fértil’, começou há quase 10.000 anos. Estendeu-se desde as
terras dos rios Tigre e Eufrates, passando pela Fenícia, na costa oriental do
Mediterrâneo, e alcançando o vale do Nilo. Dali, expandiu-se para a Grécia e
mais além, destaca Chomsky.
Segundo o prolífico autor estadunidense, a terra do Eufrates
e Tigre foi cenário de “indescritíveis horrores, nos últimos anos”.
“A agressão de George W. Bush e Tony Blair, em 2003, a que
muitos iraquianos compararam com as invasões mongóis do século XIII, foi outro
golpe letal a mais” e conseguiu destruir “grande parte do que sobreviveu no
Iraque, após as sanções da ONU impulsionadas por Bill Clinton”, acrescenta.
De acordo com Chomsky, uma das terríveis consequências que a
invasão dos Estados Unidos e do Reino Unido deixou nesse país, conforme
apresenta em um artigo para o jornal ‘The New York Times’, é a mudança radical
que a cidade de Bagdá experimentou: dos bairros mistos de 2003 aos atuais
enclaves sectários.
A região está em pedaços
“Os conflitos agravados pela invasão se estendeu para além
e, agora, a região está em pedaços”, enfatiza o analista político. Boa parte da
área do Tigre e do Eufrates está nas mãos do Estado Islâmico que, em sua
avaliação, defende “a forma extremista do islã radical, que tem a sua casa na
Arábia Saudita”.
“Um obstáculo importante para a propagação da praga do
Estado Islâmico ao Líbano é o Hezbollah, um inimigo dos Estados Unidos e de seu
aliado israelense”, aponta o filósofo. Além disso, o grupo jihadista é uma
preocupação que, atualmente, tanto Washington como Teerã compartilham.
Em seu artigo, Chomsky também cita as palavras do
correspondente do Oriente Médio para o jornal ‘The Independent’, Patrick
Cockburn, que ressalta a contradição da reação do Ocidente diante do surgimento
do Estado Islâmico: enquanto que, por um lado, lutam para impedir que o grupo
jihadista avance no Iraque, por outro, esforçam-se em minar o Governo de Bashar
al Assad, o grande rival desse agrupamento na Síria.
“O fascismo social se move sob estruturas formalmente democráticas”
. Entrevista com Juan Carlos
Monedero
REVISTA IHU ON-LINE
13 Setembro 2016
A rápida visita de Juan Carlos Monedero pela Argentina não
impede o cientista político e fundador do Podemos de analisar a situação de
incerteza que se vive hoje na Espanha, onde o Partido Popular segue sem formar
governo. “Na Espanha, está se gestando outro 15-M, porque basicamente as
instituições ainda não refletem a mudança social que se viveu”, destaca o
ex-secretário do partido nascido em inícios de 2014, após os protestos contra
os ajustes econômicos. O avanço de uma nova onda neoliberal na América Latina é
outro dos processos que preocupa Monedero, pela “procedência autoritária” que
percebe. Na entrevista ao jornal Página/12, o dirigente não hesita em afirmar
que “Mauricio Macri possui uma caligrafia bonita e uma gramática autoritária”.
A entrevista é de Emanuel Respighi, publicada por Página/12,
11-09-2016. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Nas últimas eleições, Podemos alcançou 71 deputados, mas
perdeu um milhão de votos. Como avalia esse processo político?
Somos uma força muito jovem, que enfrentou seis processos
eleitorais em dois anos sem pedir dinheiro aos bancos, com todos os meios de
comunicação e partidos políticos contra, porque éramos a novidade que vinha
impugnar o que eles significavam. Apesar de tudo, obtivemos 5 milhões de votos.
É um apoio que ninguém poderia prever. Rompeu-se o bipartidarismo na Espanha.
Hoje, não temos força suficiente para apear os defensores das políticas neoliberais,
como o PP, o PSOE e Cidadãos, ao mesmo tempo que eles não têm força suficiente
para formar governo. Abrem-se duas possibilidades. Uma é que o sistema faça uma
operação cirúrgica, permitindo um governo do PP, com os partidos lhe
“emprestando” alguns votos, mais alguma abstenção. Uma mudança com certa
violência simbólica. E a outra alternativa é que haja uma terceira eleição. O
status quo não soube dar resposta à Espanha emergente, jovem, urbana e bem
preparada que não quer saber dos velhos partidos.
Nem sequer o fim do bipartidarismo e a abstenção de 30% do
eleitorado abriram os olhos dos dirigentes espanhóis?
Preferiram tentar matar o mensageiro, tentar nos acusar de
qualquer coisa, nos judicializar, nos demonizar. Ao invés de assumir que a
Constituição já não oferece respostas às demandas, que há um problema
territorial que não se soluciona e que o modelo neoliberal expulsa setores
importantes da cidadania. Quando se toma consciência de que os filhos viverão
pior que seus pais, é necessário repensar o contrato social. Nós enxergamos
isto com clareza, junto com milhões. Há setores conservadores, egoístas, que agitam
o medo apresentando o que deve ser o pior refrão dos provérbios espanhóis, e
que alimenta os partidos do regime: “mais vale o mau conhecido, que o bom por
conhecer”. O PP não apresentou nenhuma proposta de emenda, nenhuma autocrítica,
nenhuma mudança. E no PSOE, que perdeu 5 milhões de votos e seu eleitorado é
composto por pessoas idosas que vivem nas zonas rurais e com baixos níveis de
estudo, a única busca é a sobrevivência pessoal de seus líderes.
A onda neoliberal que na Espanha está em crise, parece se
ter revitalizado na América Latina. Como percebe a transformação no sinal
político que se evidencia na região?
Milhões de pessoas saíram da pobreza graças a estes governos
de mudança. Na última década e meia, houve um reforço do compromisso com a democracia
que agora está se fragilizando, diante da falta de respeito que a direita tem
com a democracia. A direita parece que só aceita as regras do jogo quando
vence. O modelo neoliberal é igual em todos os lugares. Tem a mesma lógica
depredadora, onde algumas minorias utilizam a capacidade de extorsão dos
setores financeiros e a capacidade de impunidade das grandes empresas
transnacionais, acrescido com o controle praticamente de oligopólio dos meios
de comunicação, para construir uma verdade incontestável, que convida à
resignação e implica em reverter o avanço do Estado social e democrático. Isso
é o que explica o crescimento de bolsas de pobreza na Espanha, em Portugal, na
Grécia, na Itália, em todos os lugares. E aqui também. Isso explica a conivência
absoluta entre as elites, por exemplo, entre Macri e (Mariano) Rajoy, já que os
dois respondem a esse mesmo delineamento de beneficiar algumas minorias e
prejudicar as maiorias.
O que me preocupa é a procedência autoritária. Há formas
ditatoriais em regimes democráticos. É o que acontece com a “Lei mordaça” na
Espanha e, aqui, com a retirada da Telesur da grade de TV, que coloca Macri ao
lado das ditaduras. Só as ditaduras fecham meios de comunicação comprometidos
com a democracia, com a liberdade e com a pluralidade. O refluxo
antidemocrático na Europa, com um crescimento das opções de extrema-direita, é
o mesmo que se verifica na Argentina, onde se expressa a vontade de reverter o
conquistado. Esse choque gera respostas cidadãs amplas que o neoliberalismo
enfrenta com violência simbólica e policial. Essa ordem está representada,
aqui, com Macri, no golpe de Estado dado no Brasil contra Dilma, no México com
Peña Nieto... Regimes que geram violência social.
São partidos que chegam pelo voto popular, com um discurso
progressista e de boas maneiras, que depois contrastam com suas políticas. Há
uma nova “estética” da direita?
Macri possui uma caligrafia bonita e uma gramática
autoritária. Não se pode soprar e sorver ao mesmo tempo. Possuem uma retórica
populista, de luta contra a corrupção, de luta contra gente a que se
estigmatiza como responsável por todos os males, apelações vagas à
participação, um discurso colorido. Parecem anúncios da Coca-Cola. Mas, é uma
prática que beneficia as empresas elétricas e prejudica os consumidores, que
beneficia setores exportadores, mas empobrece os cidadãos, que permite
cosmopolitismo em dólares a uma minoria e condena as maiorias a uma pobreza em
pesos. O problema de fundo é que o controle férreo dos meios de comunicação fez
com que as vítimas votem em seus verdugos. Essa é a grande reflexão que é
preciso fazer. Como é que votamos em nossos verdugos? Aconteceu na Europa que,
após a Segunda Guerra Mundial, as forças de mudança retiraram milhões de
pessoas da pobreza, tornando-as classes médias, e 30 anos depois votam em seus
verdugos: em Margaret Thatcher, na Grã-Bretanha, por exemplo, que os devolve
outra vez a posições de quase marginalidade. Aqui, ocorreu o mesmo. A Argentina
passou a ser uma referência dos Direitos Humanos, da soberania nacional frente
às multinacionais... Nestes meses, o que vemos é um retorno ao passado. Macri
está desmantelando políticas que afetam a cidadania.
Uma cidadania que, diferente de outros momentos da história,
parece ter se empoderado de certos direitos, que são defendidos na rua.
Essa gente tem a possibilidade de defender nas instituições
e na rua conquistas que fazem parte de um contrato social que o neoliberalismo
necessita mudar. Ao modelo neoliberal lhe resta a democracia. E isso é compreendido
pelos povos ou, caso contrário, voltaremos às longas noites de ditadura, mesmo
que sejam sob formatos democráticos.
Você acredita que as ditaduras não são só pela maneira como
se chega ao poder, mas também pela forma como é exercido?
Quando se desvirtua o contrato social, se está esvaziando a
Constituição. Se na Constituição argentina há um compromisso com a liberdade,
com a igualdade, com o desenvolvimento de uma vida digna, e o governo os evita,
é claro que esse governo está pisoteando a Constituição, ainda que haja
eleições. Não basta que existam partidos e eleições para assumir que há
democracias, se não existem meios de comunicação plurais, se as desigualdades
econômicas são tão grandes. Se há setores que tentam fazer com que uma parte
dos cidadãos se distancie da política, ainda que haja eleições, estão
subvertendo o conteúdo democrático. Não devemos pensar em ditaduras como nos
anos 1930, na Europa, e 1970, na América Latina, porque hoje já não é
necessário bombardear o Palácio de la Moneda: se dá um golpe parlamentar à
presidente como ocorreu com Dilma, onde 60% desses parlamentares estão
envolvidos em casos de corrupção. Hoje, já não é necessário cortar as mãos ou
fuzilar Víctor Jara para que não cante: basta retirar das grades os meios de comunicação
que dizem coisas que os demais não dizem, homogeneizando o discurso. O fascismo
social se move sob estruturas formalmente democráticas, mas com um nível de
exclusão próprio de regimes autoritários. Não se deve pensar nas ditaduras como
na imagem de Pinochet com o casaco e os óculos escuros, mas o resultado de
perda de direitos em todos os âmbitos às vezes é semelhante.
Como as corporações cercam a democracia.
Artigo de Ladislau Dowbor
REVISTA IHU ON-LINE
24 Junho 2016
Radiografia de um sequestro: banqueiros e megaempresários
colonizam os partidos, compram acordos no Judiciário, comandam mídia e extraem
dinheiro dos Tesouros. Haverá saída?
O artigo é de Ladislau Dowbor, economista, doutor em
Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de
Varsóvia, professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –
PUC-SP e da Universidade Metodista de São Paulo – Umesp, e consultor de
diversas agências das Nações Unidas, em artigo publicado por Outras Palavras,
23-06-2016.
Eis o artigo.
“A política mudou de lugar: a globalização desafia
radicalmente
os quadros de referência da política, como prática e teoria”
Octávio
Ianni [2]
“Capture is
more subtle and no longer requires a transfer of funds,
since the
politician, academic or regulator has started to believe
that the
world works in the way that bankers say it does”
Joris Luyendijk [3]
Olhar o século 21 pelas lentes do século passado não ajuda.
Quando pensamos o mundo da economia, pensamos ainda em interesses econômicos e
mecanismos de mercado. A política, o poder formal, os impostos, o setor público
em geral representariam outra dimensão. Não é nova a ruptura destas fronteiras,
a penetração dos interesses de grupos econômicos privados na esfera pública. O
que é novo, é a escala, a profundidade e o grau de organização do processo. O
que já foram deformações fragmentadas, penetrações pontuais através de lobbies,
de corrupção e de “portas-giratórias” entre o setor privado e o setor público
se avolumaram, e por osmose estão se transformando em poder político articulado
em que o interesse público é que aflora apenas por momentos e segundo esforços
prodigiosos de manifestações populares, de frágeis artigos na mídia
alternativa, de um ou outro político independente. O poder corporativo
tornou-se sistêmico, capturando uma a uma as diversas dimensões de expressão e
exercício de poder, e gerando uma nova dinâmica, ou uma nova arquitetura do
poder realmente existente.
Uma forma é a própria expansão dos tradicionais lobbies. A
Google, por exemplo, tem hoje oito empresas de lobby contratadas apenas na
Europa, além de financiamento direto de parlamentares e de membros da Comissão
Europeia. É provável que tenha de pagar 6 bilhões de euros por ilegalidades cometidas
no Velho Continente. Os gastos da Google nesta área já se aproximam dos da
Microsoft. A Google mobilizou congressistas americanos para pressionarem a
Comissão: “O esforço coordenado por senadores e membros do Congresso, bem como
de um comité de congressistas, fez parte de um esforço sofisticado, com muitos
milhões de libras em Bruxelas, com que a Google montou a ofensiva para travar
as resistências à sua dominação na Europa.” [4]
Enquanto os lobbies ainda podem ser apresentados como formas
externas de pressão, muito mais importante é o financiamento direto de
campanhas políticas, através de partidos ou investindo diretamente nos
candidatos. No Brasil lei promulgada em 1997 autorizou as empresas a financiar
candidatos, com impactos desastrosos em particular no comportamento de
parlamentares, que passaram a formar bancadas corporativas. Em 2010, os Estados
Unidos seguiram o mesmo caminho, levando a que hoje os americanos comentem que
“temos o melhor Congresso que o dinheiro pode comprar”. No Brasil finalmente o
STF decretou a ilegalidade da prática, a valer a partir das próximas eleições.
Mas em 2016 ainda temos uma bancada ruralista, além da grande mídia, das
empreiteiras, dos bancos, das montadoras, e contam-se nos dedos os
representantes do cidadão. O truncamento do Código Florestal e consequente
retomada da destruição da Amazônia, o bloqueio da taxação de transações
financeiras e tantas outras medidas, ou ausência de medidas como é o caso da
tributação sobre fortunas ou capital improdutivo, resultam desta nova relação
de forças que um Congresso literalmente comprado permite.
A captura da área jurídica adquiriu imensa importância, e se
dá por várias formas. Foi notória a tentativa dos grandes bancos brasileiros,
por meio de financiamentos de diversos tipos, de colocar as atividades
financeiras fora do alcance do Procon e de outras instâncias de defesa do
consumidor. Nos Estados Unidos, um juiz de uma comarca decide colocar a
Argentina na ilegalidade no quadro dos chamados “fundos abutres”, pondo-se claramente
a serviço da legalização da especulação financeira internacional, e acima da
legislação de outro país.
Uma forma particularmente perniciosa de captura do
judiciário deu-se por meio dos acordos ditos “settlements” , pelos quais as
corporações pagam uma multa mas não precisam reconhecer a culpa, evitando assim
que os administradores sejam criminalmente responsabilizados. Assim, os
administradores corporativos e financiadores ficam tranquilos em termos de
eventuais condenações. Joseph Stiglitz comenta: “Temos notado repetidas vezes
que nenhum dos responsáveis encarregados dos grandes bancos que levaram o mundo
à beira da ruína foi considerado responsável (accountable) por seus malfeitos.
Como pode ser que ninguém seja responsável? Especialmente quando houve
malfeitos da magnitude dos que ocorreram nos anos recentes?” [5] Elizabeth
Warren, senadora americana, traz no seu curto estudo uma excelente descrição
dos mecanismos, com nomes das empresas. [6]
A GSK, por exemplo, um gigante da área farmacêutica, fez um
acordo com a justiça norte-americana para compensar fraude generalizada com
três tipos de medicamentos, pagando 3 bilhões de dólares. A notícia da
condenação por fraude que atingiu milhões de pacientes não causou prejuízo
significativo à empresa, cujas ações subiram ao se constatar que tinha lucrado
com a fraude mais do que o valor da multa. Os aplicadores financeiros
consideraram que o seu dinheiro fora bem defendido. Esta desresponsabilização é
hoje generalizada, abrindo uma porta paralela de financiamento de governos
graças às ilegalidades. Para dar alguns exemplos, o Deutsche Bank está pagando
uma multa de 2,6 bilhões de dólares em 2015; o Crédit Suisse está pagando 2,5
bilhões por condenação em 2014 e assim por diante, envolvendo todos os gigantes
corporativos. Um exercício de sistematização da criminalidade financeira pode
ser encontrado no site Corporate Research Project, que apresenta as condenações
e acordos agrupados por empresa. George Monbiot chama isto de “um sistema
privatizado de justiça para as corporações globais” e considera que “a
democracia é impossível nestas circunstâncias”.[7] (252)
Hoje as corporações dispõem do seu próprio aparato jurídico,
como o International Centre for the Settlement of Investment Disputes (ICSID) e
instituições semelhantes em Londres, Paris, Hong Kong e outros. Tipicamente,
irão atacar um país se este impuser regras ambientais ou sociais que o mundo
corporativo julga desfavoráveis, e processá-lo por lucros que poderiam ter
tido. A disputa jurídica constitui uma dimensão essencial dos tratados TTIP
(Transatlantic Trade and Investment Partnership), na esfera do Atlântico, e TPP
(Trans-Pacific Partnership) na esfera do Pacífico. Tais acordos amarram um
conjunto de países com regras internacionais em que os Estados nacionais
perderão a capacidade de regular questões ambientais, sociais e econômicas, e
muito particularmente, as próprias corporações. Pelo contrário, serão as
próprias corporações a impor-lhes — e a nós todos — as suas leis. Nas palavras
de Luís Parada, um advogado de governos em litígio com grupos mundiais
privados, “a questão finalmente é de saber se um investidor estrangeiro pode
forçar um governo a mudar as suas leis para agradar ao investidor, em vez de o
investidor se adequar às leis que existem no país.” [8]
Outro eixo poderoso de captura do espaço político se dá
através do controle organizado da informação, construindo uma fábrica de
consensos onde Noam Chomsky nos deu análises preciosas.[9] O alcance planetário
dos meios de comunicação de massa, e a expansão de gigantes corporativos de
produção de consensos permitiram que se atrasasse em décadas a compreensão
popular do vínculo entre o fumo e o câncer; que se bloqueasse nos Estados
Unidos a expansão do sistema público de saúde; que se vendesse ao mundo a
guerra pelo controle do petróleo como uma luta para libertar a população
iraquiana da ditadura e para proteger o mundo de armas de destruição em massa.
A escala das mistificações é impressionante.
Ofensiva semelhante em escala mundial, e em particular nos
EUA, foi organizada para vender ao mundo não a ausência da mudança climática –
os dados são demasiado fortes – mas a suposição de que “há controvérsias”,
adiando ou travando a inevitável mudança da matriz energética. James Hoggan
realizou uma pesquisa interessante sobre como funciona esta indústria. A
articulação é poderosa, envolvendo os think tanks, instituições conservadoras
como o George C. Marshall Institute, o American Enterprise Institute (AEI), o
Information Council for Environment (ICE), o Fraser Institute, o Competitive
Enterprise Institute (CEI), o Heartland Institute, e evidentemente o American
Petroleum Institute (API) e o American Coalition for Clean Coal Electricity
(ACCCE), além do Hawthorne Group e tantos outros. A ExxonMobil e a Koch
Industries são poderosos financiadores, esta última aliás grande articuladora
do Tea Party e da candidatura Trump. Sempre petróleo, carvão, produtores de
carros e de armas, muitos republicanos e a direita religiosa.[10]
Campanhas deste gênero são veiculadas por gigantes da mídia.
No Brasil, 97% dos domicílios têm televisão, que ocupa três a quatro horas do
nosso dia, e que está presente nas salas de espera, nos meios de transporte,
incessante bombardeio que parte de alguns poucos grupos. No nível mundial,
Rupert Murdoch assume tranquilamente ser o responsável pela ascensão e suporte
a Margareth Thatcher, financiou um sistema de escutas telefônicas em grande
escala na Grã-Bretanha, sustenta um clima de ódio de direita através da Fox,
sem receber mais que um tapinha na mão quando se revelam as ilegalidades que
pratica. No Brasil, com o controle da nossa visão de mundo por quatro grupos
privados – os Marinho, Civita, Frias e Mesquita – o próprio conceito de
imprensa livre se torna surrealista, e os impactos na Argentina, no Chile, na
Venezuela e outros países são impressionantes em termos de promoção das visões
mais retrógradas e de geração de clima de ódio social.
A vinculação da dimensão midiática do poder com o sistema
corporativo mundial é em grande parte indireta, mas muito importante. As
campanhas de publicidade veiculadas promovem incessantemente comportamentos e
atitudes, centrados no consumismo obsessivo dos produtos das grandes
corporações. Isto amarra a mídia de duas formas: primeiro, porque pode dar más
notícias sobre o governo, mas nunca sobre as empresas, mesmo quando entopem os
alimentos de agrotóxicos, deturpam a função dos medicamentos ou nos vendem
produtos associados com a destruição de biomas como a floresta amazônica.
Segundo, como a publicidade é remunerada em função de pontos de audiência, a
apresentação de um mundo cor de rosa de um lado, e de crimes e perseguições
policiais de outro, tudo para atrair a atenção pontual e fragmentada, torna-se
essencial, criando uma população desinformada ou assustada, mas sobretudo
obcecada com o consumo, o que remunera com nosso dinheiro as corporações que
financiam estes programas. O círculo se fecha, e o resultado é uma sociedade
desinformada e consumista. A publicidade, o tipo de programas e de informação,
o consumismo e o interesse das corporações passam a formar um universo
articulado e coerente, ainda que desastroso em termos de funcionamento
democrático da sociedade.[11] (217)
Além dos think tanks e do controle da mídia, o controle das
próprias visões acadêmicas avançou radicalmente nas últimas décadas, por meio
dos financiamentos corporativos diretos, e em particular pelo controle das
publicações científicas. Em muitos países, e particularmente no Brasil, as
universidades privadas passaram a ser propriedade de grupos transnacionais que
trazem a visão corporativa no seu bojo. A dinâmica é particularmente sensível
nos estudos de economia. Helena Ribeiro traz um exemplo desta deformação
profunda do ensino na universidade Notre Dame de Nova York. “Dado que corria o
ano de 2009 e o mundo financeiro entrava em colapso aos olhos de todos, os
alunos pensaram que seria um excelente tema para debater na aula de
macroeconomia. A resposta do professor: “Os estudantes foram laconicamente
informados que o tema não constava do conteúdo programático da disciplina, nem
era mencionado na bibliografia afixada e que, por isso, o professor não
pretendia divergir da lição que estava planejada. E foi o que fez”. O artigo de
Ribeiro mostra as dimensões desta deformação, mas também os protestos dos
alunos e a multiplicação de centros alternativos de pesquisa econômica, como o New
Economics Foundation, a Young Economists Network, o Institute of New Economics
Thinking e numerosas outras instituições.[12]
Menos percebido, mas igualmente importante, é a
oligopolização do controle das publicações científicas no mundo. Segundo estudo
canadense, “nas disciplinas das ciências sociais, que incluem especialidades
tais como sociologia, economia, antropologia, ciências políticas e estudos
urbanos, o processo é impressionante: enquanto os cinco maiores editores eram
responsáveis por 15% dos artigos em 1995, este valor atingiu 66% em 2013”.
Temos aqui o domínio impressionante de Reed-Elsevier (hoje boicotado por mais
de 15 mil cientistas americanos), Springer, Wiley-Blackwell, e poucos mais.
(Larivière, 2015)[13]
A este conjunto de mecanismos de captura do poder temos de
acrescentar a erosão radical da privacidade nas últimas décadas. Hoje o sangue
da nossa vida trafega em meios magnéticos, deixando rastros de tudo que
compramos ou lemos, da rede dos nossos amigos, os medicamentos que tomamos, o
nosso nível de endividamento. As empresas têm acesso à gravidez de uma
funcionária, através da compra de informações dos laboratórios. A defesa dos
grandes grupos de informação sobre as pessoas é de que se trata de informações
“anonimizadas”, mas a realidade é que os cruzamentos dos rastros eletrônicos
permitem individualizar perfeitamente as pessoas, influindo em potencial
perseguição política ou dificuldades no emprego. Mas o acesso às informações
confidenciais das empresas também fragiliza radicalmente grupos econômicos
menores frente aos gigantes, que podem ter acesso às comunicações internas. Não
se trata apenas de alto nível de espionagem, como se viu na gravação de
conversas de Dilma Roussef e Angela Merkel. Trata-se de todos nós, e com o
apoio de um sistema mundial de captura e tratamento de informações do porte da
NSA. O Big Brother is Watching You deixou de ser apenas literatura.[14]
A expansão dos lobbies, a compra dos políticos, a invasão do
judiciário, o controle dos sistemas de informação da sociedade, a manipulação
do ensino acadêmico e a invasão da privacidade representam alguns dos
instrumentos mais importantes da captura do poder político geral pelas grandes
corporações. Mas o conjunto destes instrumentos leva, em última instância, a um
mecanismo mais poderoso que os articula e lhe confere caráter sistêmico: a
apropriação dos próprios resultados da atividade econômica, por meio do
controle financeiro em pouquíssimas mãos.
Vejamos agora um pouco o que são estas grandes corporações.
É surpreendente, mas até 2012 não tínhamos nenhum estudo global de como
funciona a rede mundial de controle corporativo. O Instituto Federal Suíço de
Pesquisa Tecnológica, um tipo de MIT da Europa, selecionou 43 mil grupos
mundiais mais importantes e estudou em profundidade como se dá, através de
participações cruzadas e de fusões interempresariais, o controle do conjunto.
Chegou a uma cifra impressionante que mudou a visão que temos do sistema
econômico mundial: 737 grupos apenas controlam 80% do mundo corporativo, sendo
que nestes um núcleo de 147 controla 40%. Estes últimos gigantes são
essencialmente (75%) grupos financeiros. Ou seja, não precisam controlar
diretamente o processo decisório, seguram o sistema, digamos assim, pelas
partes delicadas, que é o acesso aos recursos. Um grupo tão limitado não
precisa fazer conspirações misteriosas, são pessoas que se conhecem no campo de
golfe ou no Open de Tênis da Austrália, se ajeitam confortavelmente entre si.
Os autores da pesquisa concluem claramente que falar em mecanismos de mercado
neste clube restrito não faz muito sentido.[15]
François Morin, assessor do banco central da França,
concentra a sua análise na forma como os 28 maiores gigantes financeiros se
articulam. Na análise estão todos: JPMorgan Chase, Bank of America, Citigroup,
HSBC, Deutsche Bank, Santander, Goldman Sachs e outros, com um balanço de mais
de 50 trilhões de dólares em 2012, quando o PIB mundial foi de 73 trilhões. A
relação com os Estados é particularmente interessante, pois a dívida pública
mundial, de 49 trilhões, está no mesmo nível que o faturamento dos 28 grupos
financeiros que Morin analisa, também da ordem de 50 trilhões. Os Estados,
fruto do endividamento público com gigantes privados, viraram reféns e
tornaram-se incapazes de regular este sistema financeiro em favor dos
interesses da sociedade. “Face aos Estados fragilizados pelo endividamento, o
poder dos grandes atores bancários privados parece escandaloso, em particular
se pensarmos que estes últimos estão, no essencial, na origem da crise
financeira, logo de uma boa parte do excessivo endividamento atual dos
Estados”. (Morin, 36)[16]
O poder político apropriado pelo mecanismo da dívida
constitui uma parte muito importante do mecanismo geral. Os grandes grupos
financeiros têm suficiente poder para impor a nomeação dos responsáveis em
postos chave como os bancos centrais ou os ministérios da fazenda, ou ainda nas
comissões parlamentares correspondentes, com pessoas da sua própria esfera,
transformando pressão externa em poder estrutural internalizado. A política
sugerida aos governos é de que é menos impopular endividar o governo do que
cobrar impostos. “Estas instituições financeiras são as donas da dívida do
governo, o que lhes confere poder ainda maior de alavancagem sobre as políticas
e prioridades dos governos. Exercendo este poder, elas tipicamente demandam a
mesma coisa: medidas de austeridade e ‘reformas estruturais’ destinadas a
favorecer uma economia de mercado neoliberal que em última instância beneficia
estes mesmos bancos e corporações”. É a armadilha da dívida. (Marshall)[17]
Os 28 controlam igualmente os chamados derivativos,
essencialmente especulação com variações de mercados futuros: o volume atingido
em 2015 é de mais de 600 trilhões de dólares, 8 vezes o PIB mundial. Se
pensarmos que tantos países aceitaram de reduzir os investimentos públicos e as
políticas sociais — inclusive o Brasil –, para satisfazer este pequeno mundo
financeiro, não há como não ver a dimensão política que o sistema assumiu. Os
grandes traders de commodities controlam nada menos que o comércio dos grãos
(milho, trigo, arroz, soja), os minerais metálicos, os minerais não metálicos e
os recursos energéticos, ou seja, o sangue da economia mundial. As gigantescas
variações dos preços do petróleo, por exemplo, não resultam de variações da
produção ou do consumo, muito estáveis na escala planetária, mas dos processos
especulativos dos gigantes financeiros.[18]
O sistema é hoje articulado. Um aporte particularmente forte
de François Morin é a análise de como este grupo de bancos foram se dotando, a
partir de 1995, de instrumentos de articulação, a GFMA (Global Financial
Markets Association), o IIF (Institute of International Finance), a ISDA
(International Swaps and Derivatives Association), a AFME (Association for
Financial Markets in Europe) e o CLS Bank (Continuous Linked Settlement System
Bank). Morin apresenta em tabelas como os maiores bancos se distribuem nestas
instituições. O IIF, por exemplo, “verdadeira cabeça pensante da finança
globalizada e dos maiores bancos internacionais”, constitui hoje um poder
político assumido: “O presidente do IIF tem um status oficial, reconhecido, que
o habilita a falar em nome dos grandes bancos. Poderíamos dizer que o IIF é o
parlamento dos bancos, seu presidente tem quase o papel de chefe de estado. Ele
faz parte dos grandes tomadores de decisão mundiais”. (Morin, 61)
Um instrumento particularmente importante deste poder reside
no uso dos paraísos fiscais, que a partir da crise de 2008 foram
suficientemente estudados para que tenhamos hoje os contornos do seu
funcionamento. Basicamente, para um PIB mundial da ordem de 73 trilhões de
dólares em 2012, o estoque de recursos financeiros em paraísos fiscais
situou-se entre 21 e 32 trilhões de dólares segundo a Tax Justice Network,
cifra que a revista Economist arredonda para 20 trilhões.[19] Para se ter uma
ideia dos valores, a grande decisão da cúpula mundial sobre o clima, em Paris
em 2015, foi de alocar até, 2020, 100 bilhões de dólares anuais para salvar o
planeta do aquecimento global: duzentas vezes menos do que está aplicado em
paraísos fiscais, capital improdutivo e em grande parte ilegal. Os arquivos do
Panamá abrem apenas uma janela do processo, mas mostram como dezenas de
milhares de corporações fictícias geraram o caos financeiro atual. [20]O caos
no sistema financeiro do Brasil é apenas um fragmento deste processo
mundial.[21]
Estes recursos são hoje vitalmente necessários para
financiar a reconversão tecnológica que nos permita de parar de destruir o
planeta e para assegurar a inclusão produtiva de bilhões de marginalizados,
reduzindo desigualdade que atingiu níveis explosivos. Com o grau presente de
captura do processo decisório sobre a alocação de recursos, privou-se os
Estados de qualquer controle: praticamente todas as grandes corporações têm
filiais ou empresas “laranja” nos paraísos fiscais, onde o dinheiro
simplesmente desaparece em termos formais, para reaparecer com nomes de outras
empresas, gerando um espaço “branco” onde o seguimento do fluxo financeiro se
interrompe, permitindo toda classe de ilegalidades, e em particular a evasão
fiscal e inúmeras atividades ilegais como o comércio de armas e drogas.[22]
Com o poder hoje muito mais na mão dos gigantes financeiros
do que das empresas produtoras de bens e serviços, estas últimas passaram a se
submeter a exigências de rentabilidade financeira que impossibilitam iniciativas,
no nível dos técnicos que conhecem os processos produtivos da economia real, de
preservar um mínimo de decência profissional e de ética corporativa. Temos
assim um caos em termos de discrepância com os interesses de desenvolvimento
econômico e social, mas um caos muito direcionado e lógico quando se trata de
assegurar um fluxo maior de recursos financeiros para o topo da hierarquia. A
sua competição caótica pode levar a crises sistêmicas, mas quando se trata de
travar iniciativas de controle ou regulação estas corporações reagem de forma
unida e organizada.
De que dimensões estamos falando? As corporações financeiras
classificadas no SIFI (Systemically Important Financial Institutions) trabalham
cada uma com um capital consolidado médio (consolidated assets) da ordem de
$1.82 trilhões para os bancos e $0,61 trilhões para as seguradoras analisadas.
Para efeitos de comparação lembremos que o PIB do Brasil, 7ª potência mundial,
é da ordem de $1,4 trilhões. Mais explícito ainda é lembrar que de acordo com os
dados de Jens Martens, o sistema das Nações Unidas dispõe de 40 bilhões dólares
anuais para o conjunto das suas atividades, o que por sua vez representa apenas
2,3% das despesas militares mundiais.[23]
Frente ao poder global das corporações, não temos instrumentos
públicos correspondentes. Pelo contrário: está sendo documentada a captura do
processo decisório da ONU pelos grupos mesmos corporativos. Estudo do Global
Policy Forum foca diretamente o fato dos interesses corporativos terem
adquirido uma influência desproporcional sobre as instituições que redigem as
regras globais. O documento apresenta “a crescente influência do setor
empresarial sobre o discurso político e a agenda”, questionando “se as
iniciativas de parcerias permitem que o setor corporativo e os seus grupos de
interesse exerçam uma influência crescente sobre a definição da agenda e o
processo decisório político dos governos”. Segundo Leonardo Bissio, “este livro
mostra como Big Tobacco, Big Soda, Big Pharma e Big Alcohol terminam prevalecendo,
e como a filantropia e as parcerias público-privadas deformam a agenda
internacional sem supervisão dos governos, mas também descreve claramente as
formas práticas para preveni-lo e para recuperar um multilateralismo baseado em
cidadãos”. (Martens, 1 e 9)
Em termos de mecanismos econômicos, é central na fase atual
a apropriação da mais-valia já não tanto nas unidades empresariais que pagam
mal os seus trabalhadores, mas crescentemente através de sistemas financeiros
que se apropriam do direito sobre o produto social através do endividamento
público e privado. Esta forma de mais-valia financeira tornou-se extremamente
poderosa. Frente aos novos mecanismos globais de exploração, que atuam em
escala planetária, e recorrem inclusive em grande escala aos refúgios nos
paraísos fiscais, os governos nacionais tornaram-se em grande parte impotentes.
Temos uma finança global descontrolada frente a um poder político fragmentado
em 195 nações, isto que o poder dentro das próprias nações, nas suas diversas
dimensões, está sendo em grande parte capturado. Tornámo-nos sistemicamente
disfuncionais.
Wolfgang Streeck traz uma interessante sistematização desta
captura do poder público no nível dos próprios governos. Por meio do
endividamento do Estado e dos o outros mecanismos vistos acima, gera-se um
processo em que o governo, cada vez mais, tem de prestar contas ao ‘mercado”,
virando as costas para a cidadania. Com isto, passa a dominar, para a
sobrevivência de um governo, não quanto está respondendo aos interesses da população
que o elegeu, e sim se o mercado, ou seja, essencialmente os interesses
financeiros, se sentem suficientemente satisfeitos para declará-lo ‘confiável’.
De certa forma, em vez de república, ou seja, res publica, passamos a ter uma
res mercatori, coisa do mercado. Um quadro resumo ajuda a entender o
deslocamento radical da política:[24] (81)
Naturalmente, um se financia através dos impostos, o outro
se financia através do crédito. Um governo passa assim a depender “de dois
ambientes que colocam demandas contraditórias sobre o seu comportamento”(80)
Entre a opinião pública sobre a qualidade do governo, e a ‘avaliação de risco’
deste mesmo governo deixar de pagar elevados juros sobre a sua dívida, a opção
de sobrevivência política cai cada vez mais para o lado do que qualificamos
misteriosamente de ‘os mercados’. Onde havia estado de bem-estar e políticas
sociais teremos austeridade e lucros financeiros. Não é secundária,
evidentemente, a transformação deste poder corporativo em sistemas tributários
que oneram proporcionalmente mais os que menos ganham. A força vira lei, o
estado vira instrumento de privatização dos próprios impostos. Segundo Streeck,
não é o fim do capitalismo, mas sim do capitalismo democrático.
A pesquisa e compreensão das novas articulações de poder são
indispensáveis para se entender os mecanismos e a escala radicalmente novos de
acumulação de riqueza nas mãos dos 0,01% da população mundial, e a espantosa
cifra de 62 bilionários que são donos de mais riqueza do que a metade mais pobre
da população mundial. Igualmente significativo é o fato da economia brasileira
estar em recessão quando os bancos Bradesco e Itaú, por exemplo viram seus
lucros declarados aumentarem entre 25% e 30% em 12 meses [25]. De certa forma,
ao analisarmos os mecanismos de captura do poder, estamos desvendando os canais
que permitem o dramático reforço da desigualdade entre e dentro das nações,
além do travamento do crescimento econômico pelo desvio dos recursos do
investimento para aplicações financeiras (26).
Restabelecer a regulação e o controle sobre estes gigantes
financeiros que passaram a reger a economia mundial e as decisões internas das
nações é hoje simplesmente pouco viável, tanto pela dimensão, como pela
estrutura organizacional sofisticada de que hoje dispõem, além evidentemente
dos sistemas de controle sobre a política, o judiciário, a mídia e a academia–
e portanto a opinião pública – conforme vimos acima. A dimensão internacional
aqui é crucial, pois a quase totalidade destes grupos é constituída por
corporações de base norte-americana ou da União Europeia. É a poderosa
materialização de um poder que é global mas no essencial pertencente ao que nos
temos acostumado a chamar de “Ocidente”. As tentativas de constituir um
contrapeso por meio da articulação dos BRICS mostram aqui toda a sua
fragilidade. O poder financeiro global tem nacionalidades, com governos
devidamente apropriados pelos mesmos grupos.
Se há uma coisa que não falta no mundo, são recursos. O
imenso avanço da produtividade planetária resulta essencialmente da revolução
tecnológica que vivemos. Mas não são os produtores destas transformações, desde
a pesquisa fundamental nas universidades públicas e as políticas públicas de
saúde, educação e infraestruturas, até os avanços técnicos nas empresas
efetivamente produtoras de bens e serviços, que levam vantagem: pelo contrário,
ambas as esferas, pública e empresarial, encontram-se endividadas nas mãos de
gigantes do sistema financeiro, que rendem fortunas a quem nunca produziu, e
que conseguem, ao juntar nas mãos os fios que controlam tanto o setor público
como o setor produtivo privado, nos desviar radicalmente do desenvolvimento
sustentável hoje vital para o mundo.
Quanto à população de um país como o Brasil, que busca
resgatar um pouco de soberania na sua posição periférica, o que parece restar é
um sentimento de impotência. Perplexas e endividadas, as famílias vêm aparecer
o seu “nome sujo” na Serasa-Experian – aliás uma multinacional – caso não
respeitem as regras do jogo. Na confusão das regras financeiras, contribuem
para a concentração de riqueza e de poder através dos altos juros que pagam nos
crediários e nos bancos, através dos juros surrealistas da dívida pública, e
através das políticas ditas de ‘austeridade’ que as privam dos seus direitos.
Estas regras do jogo profundamente deformadas serão naturalmente apresentadas
como fruto de um processo democrático e legítimo, pois está escrito na
Constituição que todo o poder emana do povo. A construção de processos
democráticos de controle e alocação de recursos constitui hoje um desafio
central. Boaventura de Souza Santos fala muito justamente na necessidade de
aprofundar a democracia. Mas na realidade, precisamos mesmo é resgatá-la da
caricatura que se tornou.
_____________________________
[1] Uma visão mais detalhada da análise apresentada no
presente artigo pode ser encontrada em Governança Corporativa,
http://dowbor.org/2015/11/ladislau-dowbor-o-caotico-poder-dos-gigantes-financeiros-novembro-2015-16p.html/
; a dimensão propriamente brasileira da deformação financeira encontra-se em
Juros Extorsivos no Brasil, Ética Editora, Imperatriz, 2016,
http://dowbor.org/blog/wp-content/uploads/2012/06/Dowbor-Juros-_pdf-com-capa.pdf
[2] Octávio Ianni – A política mudou de lugar – capítulo do
livro Desafios da Globalização, L. Dowbor, O. Ianni e P. Resende (Orgs.), ed. Vozes, Petrópolis, 2003.
[3] Joris
Luyendijk – Swimming with sharks – Guardian Books, London, 2015
http://www.theguardian.com/business/2015/sep/30/how-the-banks-ignored-lessons-of-crash
[4] The
Guardian, Revealed: How Google enlisted members of the US Congress
http://www.theguardian.com/world/2015/dec/17/google-lobbyists-congress-antitrust-brussels-eu
[5] Joseph
Stiglitz – On Defending Human Rights – Geneva, 3 December 2013
http://www.ohchr.org/Documents/Issues/Business/ForumSession2/Statements/JosephStiglitz.doc
[6] Warren,
Elizabeth – Rigged Justice – Jan. 2016, 16 p. http://www.warren.senate.gov/files/documents/Rigged_Justice_2016.pdf
and New York Times 29/01/2016
http://www.nytimes.com/2016/01/29/opinion/elizabeth-warren-one-way-to-rebuild-our-institutions.html?_r=0
[7]
Monbiot, George – A global ban on leftwing politics”, in How Did we Get into
this Mess, Verso, London, New York, 2016 –
http://www.monbiot.com/2013/11/04/a-global-ban-on-left-wing-politics/
[8]
Provost, Claire and Matt Kennard – The obscure legal system that lets
corporations sue countries – The Guardian, June 2015 – https://www.google.com/url?q=http://www.theguardian.com/business/2015/jun/10/obscure-legal-system-lets-corportations-sue-states-ttip-icsid&sa=U&ved=0ahUKEwid0aacve3JAhWJXR4KHXkHAv4QFggFMAA&client=internal-uds-cse&usg=AFQjCNE_bryAhhqokmP_TQPeoYdWUmYckQ
[9] Ver em particular o documentário Chomsky&Cia,
legendado em português, https://www.youtube.com/watch?v=IHSe9FRGpJU
[10] James Hoggan – The Climate Cover-up: the cruzade to
deny global warming –ver
http://dowbor.org/2009/12/climate-cover-up-the-cruzade-to-deny-global-warming-2.html/
; sobre os financiadores, ver
http://dowbor.org/2010/04/petroleira-dos-eua-deu-us-50-mi-a-ceticos-do-clima-6.html/
; ver também o ver artigo de Jane Mayer The dark money of the Koch Brothers,
2016, http://www.truth-out.org/news/item/35450-the-dark-money-of-the-koch-brothers-is-the-tip-of-a-fully-integrated-network
[11] Ver o curto e excelente comentário de George Monbiot,
How did we get into this mess, no livro do mesmo nome – Verso, London/New York,
http://www.monbiot.com/2007/08/28/how-did-we-get-into-this-mess/
[12] Helena Ribeiro – Os protestos nas universidades por um
novo ensino da economia – Jornal dos Negócios, Lisboa, dezembro de 2013 –
http://dowbor.org/2013/12/helena-oliveira-o-protesto-nas-universidades-por-um-no-ensino-da-economia-dezembro-2013-3p.html/
[13] V.
Larivière, S. Haustein e P. Mongeon – The Oligopoly of Academic Publishers in
the Digital Era – PlosOne, 2015,
http://dowbor.org/2016/02/the-oligopoly-of-academic-publishers-in-the-digital-era-vincent-lariviere-stefanie-haustein-philippe-mongeon-published-june-10-2015-15p.html/
[14] Lane,
S. Frederick – The Naked Employee- AMACOM, New York, 2003
http://dowbor.org/2005/06/the-naked-employee-o-empregado-nu-privacidade-no-emprego.html/
[15] Vitali, Glattfelder e Battistoni, Zurich, 2011; Ver A
rede do poder corporativo mundial – 2012 –
http://dowbor.org/2012/02/a-rede-do-poder-corporativo-mundial-7.html/
[16] François Morin – L’hydre mondiale: l’oligopole bancaire
– http://dowbor.org/2015/09/francoismorin-lhydre-mondiale-loligopole-bancaire-lux-editeur-quebec-2015-165p-isbn-978-2-89596-199-4.html/
[17] Andrew
C. Marshall – Bank crimes pay under the thumb of the global financial
mafiocracy – Truthout, 8 Dec. 2015 –
http://www.truth-out.org/news/item/33942-bank-crimes-pay-under-the-thumb-of-the-global-financial-mafiocracy
[18] Sobre os derivativos e o poder dos traders de
commodities, ver o nossoProdutores, intermediários e consimidores, 2013,
http://dowbor.org/?s=produtores%2C+intermedi%C3%A1rios+e+consumidores
[19] Henry,
James – The Price of off-shore revisited – Tax Justice Network,
http://www.taxjustice.net/2014/01/17/price-offshore-revisited/
[20] ICIJ –
The Panama Papers – https://panamapapers.icij.org/
[21]
Barbara Adams and Jens Martens – Fit for whose purpose? – Global Policy Forum,
New York, Sept. 2015 –
https://www.globalpolicy.org/images/pdfs/images/pdfs/Fit_for_whose_purpose_online.pdf
[22] Um
excelente estudo destes mecanismos pode ser encontrado em Shaxson, Nicholas –
Treasure Islands: uncovering the damage of offshore banking and tax havens –
St. Martin’s Press, New York, 2011 –
http://dowbor.org/2015/10/nicholas-shaxson-treasure-islands-uncovering-the-damage-of-offshore-banking-and-tax-havens-st-martins-press-new-york-2011.html/
[22] Joseph
Stiglitz – On Defending Human Rights – Geneva, 3 December 2013
http://www.ohchr.org/Documents/Issues/Business/ForumSession2/Statements/JosephStiglitz.doc
[23]
Barbara Adams and Jens Martens – Fit for whose purpose? – Global Policy Forum,
New York, Sept. 2015 – https://www.globalpolicy.org/images/pdfs/images/pdfs/Fit_for_whose_purpose_online.pdf
[24]
Wolfgang Streeck, Buying time – Verso, London 2014 –
http://dowbor.org/category/dicas-de-leitura/
[25] Relativamente a 2013, os bancos Itaú e Bradesco tiveram
aumento nos lucros declarados de 30,2% e 25,9%, respectivamente. Ver o
relatório Dieese –
http://www.dieese.org.br/desempenhodosbancos/2015/desempenhoBancos2014.pdf
[26] A dimensão da concentração de renda e de patrimônio tem
sido sistematizada pela OXFAM, ver o relatório de janeiro 2016 https://www.oxfam.org/sites/www.oxfam.org/files/file_attachments/bp210-economy-one-percent-tax-havens-180116-summ-pt.pdf
quarta-feira, 20 de novembro de 2019
A capacidade de constituição de novos horizontes da esquerda brasileira, hoje, é nula”
. Entrevista com Vladimir Safatle
Em análise sobre a crise da esquerda e as conjunturas
brasileira e chilena, o filósofo Vladimir Safatle é enfático ao criticar o
Estado Brasileiro e a violência por ele perpetuada conta sua população. Para
ele, "O Estado brasileiro tem como única função operar em graus
inimagináveis de violência contra sua própria população, é um Estado baseado no
extermínio, no desaparecimento, é um Estado baseado nas formas mais brutais de
morte sem sepultura que você possa imaginar; e isso como prática normal de
governo. A prática normal de governo no Brasil é essa".
Segundo professor, para renovar a política, é necessária a
"constituição de novos horizontes", algo que, conforme aponta
Safatle, a esquerda não consegue fazer porque a "capacidade de
constituição de novos horizontes da esquerda brasileira, hoje, é nula". Além
disso, Safatle também avalia que a crise chilena se dá em virtude do processo
de acumulação primitivo gerado pelo modelo neoliberal.
Professor na USP, o filósofo comenta seu último livro, Dar
corpo ao impossível: O sentido da dialética a partir de Theodor (São Paulo:
Autêntica, 2019), e explica que a obra tem como finalidade "mostrar as
estruturas dinâmicas da dialética negativa que podem orientar, ainda no
presente, uma reflexão crítica a respeito do existente, a respeito das
possibilidades de transformação, a respeito das dinâmicas gerais de movimento
dentro do nosso processo histórico, da nossa sociedade".
A entrevista é de Edison Urbano, publicada por Ideias de
Esquerda, 17-11-2019.
Eis a entrevista.
Pode começar nos falando um pouco sobre seu último livro,
“Dar corpo ao impossível”? Em que sentido você vê a importância do resgate da
dialética para entender e atuar no mundo de hoje? Qual a relação disso com a
ideia do “dar corpo”, que está no título?
Acho que a dialética é uma das figuras fundamentais do
pensamento crítico, que ainda guarda muito de sua atualidade, especialmente em
sua última tradição, que é a dialética negativa adorniana.
A ideia fundamental do livro era mostrar as estruturas
dinâmicas da dialética negativa que podem orientar, ainda no presente, uma
reflexão crítica a respeito do existente, a respeito das possibilidades de
transformação, a respeito das dinâmicas gerais de movimento dentro do nosso
processo histórico, da nossa sociedade. “Dar corpo” vem muito do fato de insistir
que a dialética é uma teoria da realização dos impossíveis, de uma certa forma,
da incorporação dos impossíveis; esse é um dos elementos fundamentais da sua
dinâmica transformadora: sair de uma teoria aristotélica do movimento, baseada
numa ideia do par “possível” e “atual”, “potência” e “ato”, para uma teoria
mais elaborada, na qual aquilo que, para uma situação atual, é impossível,
acaba sendo o embrião fundamental de uma outra forma.
Isso leva a uma segunda pergunta que queríamos fazer. No
livro, você propõe um resgate do pensamento de Theodor Adorno, um teórico
geralmente associado ao pessimismo histórico ou até ao ceticismo quanto à luta
de classes e a revolução social. No entanto, a apropriação de Adorno que o
livro propõe se afasta dessa leitura e parece sugerir quase um “Adorno
revolucionário”, talvez. Até que ponto, em sua visão, a interpretação corrente
recai em incompreensões ou lacunas sobre os textos de Adorno, ou em que medida
seria de fato uma (re)interpretação criativa aquela que você propõe?
Olha eu diria o seguinte, essa interpretação mais usual de
uma espécie de Adorno conservador, se podemos dizer assim, é muito fruto dos
fantasmas que assombram a sociedade alemã, com a crença atávica e necessária
numa espécie de pacto geral produzido pelo Estado e traduzido pela economia
social de mercado, pelo “Estado de bem-estar social”, e com o colapso desses
dispositivos de gestão social, a função que os intelectuais tiveram dentro
desse horizonte, ao serem simplesmente uma espécie de portadores um tanto
nostálgicos da recuperação desse modelo, muito vinculado a uma dinâmica que não
é nem social-democrata, é uma dinâmica social-democrata/democracia-cristã. Aí,
de uma certa forma, seria importante para esses intelectuais que o Adorno
aparecesse como um niilista, como um derrotista, alguma coisa dessa natureza.
O que eu acho que está longe, mas muito longe de ser
verdade, é alguém que em momento algum abandona o horizonte de transformação
revolucionária como elemento normativo fundamental do pensamento. O que ele faz
é compreender a complexidade da efetivação desse processo dentro da situação
que ele viveu, que era o momento dos 30 gloriosos, o momento um pouco áureo dos
modelos de coalizão e consenso dentro da democracia liberal. Ele insiste um pouco
no colapso da constituição dos sujeitos históricos, vinculados à classe
operária, ao proletariado… o que não significa de maneira nenhuma que ele abra
mão, isso que eu queria dizer: compreender a complexidade do processo não
significa você abrir mão dele. É isso que ele faz: quais são as condições para
que uma dinâmica revolucionária realmente se realize no interior das sociedades
ocidentais, esse é um problema fundamental para o Adorno. Eu desafio qualquer
pessoa que o leia de fato com interesse a provar o contrário.
Compreender a complexidade do processo não significa você
abrir mão dele. É isso que Adorno faz: quais são as condições para que uma
dinâmica revolucionária realmente se realize no interior das sociedades
ocidentais – Vladimir Safatle
Passando já então para o nosso segundo bloco, que é mais
internacional, a primeira pergunta parte de constatar que estamos diante de um
cenário extremamente dinâmico na América Latina, com grandes revoltas de massas
como as do Equador e agora no Chile, e tentativas de golpe de direita, como
vimos também agora na Bolívia. Como você analisa esses processos? Considera
pertinente a hipótese de que o processo dos Coletes Amarelos na França, no
final do ano passado, abriu um novo período para formas novas de expressão da
luta de classes?
É, eu não sei se o marco são mesmo os Gilets Jaunes [Coletes
Amarelos] franceses, acho que é um processo que vem na verdade, desde a
Primavera Árabe, que vai se consolidando de uma forma paulatina como uma
dinâmica animada por lutas de classes; agora, eu acho que na verdade o que faz
o ponto de viragem é o movimento chileno, que aí fica muito explícito. É claro
que há questões econômicas muito profundas na pauta dos franceses, mas no caso
dos chilenos você tem as pautas econômicas e a exigência de uma transformação
social radical, uma transformação institucional radical e uma articulação
transversal das lutas, com uma hegemonia muito, muito forte, ligada a pautas de
reconhecimento, de opressões, da opressão dos mapuches, de uma outra
reconfiguração do vínculo social.
O processo francês foi paulatinamente em direção a isso:
como todo movimento de rua, ele começa um pouco com contradições internas, e
essas contradições vão se amainando, inclusive com a capacidade que alguns
grupos tiveram de conseguir intervir no processo de construção de hegemonia.
Mas o que eu acho é que, a partir de agora, a gente tem uma tendência que deve
ser explorada de recondução da luta de classes para o centro das lutas
políticas, dos processos de mobilização e manifestação; isso seria uma coisa
absolutamente fundamental daqui pra frente, para que a gente conseguisse ter
uma capacidade não só aglutinadora maior, mas também uma capacidade de
transformação efetiva.
A gente tem uma tendência que deve ser explorada de
recondução da luta de classes para o centro das lutas políticas, dos processos
de mobilização e manifestação; isso seria uma coisa absolutamente fundamental
daqui pra frente, para que se conseguir ter uma capacidade não só aglutinadora
maior, mas também uma capacidade de transformação efetiva – Vladimir Safatle
Nós íamos passar para
outra pergunta, mas aproveitando então o interesse da questão do Chile, só uma
última pergunta, porque uma das demandas que tem sido discutida a partir do
movimento, e que o próprio governo Piñera tentou abordar à sua maneira, é a
questão da Assembleia Constituinte. Como você vê a relação disso com esse
desejo de ruptura institucional que você acabou de comentar?
Eu acho fundamental, fundamental. E é muito engraçado que
isso volte, porque esse é o modelo da luta dos islandeses. Os islandeses
fizeram suas lutas contra os pactos financistas ligados às receitas do Fundo
Monetário Internacional, e uma questão fundamental é uma nova Assembleia
Constituinte, uma nova Constituição. Porque eles percebem que a crise não é só
econômica, a crise é política também, a questão fundamental é que tipo de
regime político é esse que permite uma crise econômica dessa natureza. Que não
é exatamente uma crise, diga-se de passagem, é simplesmente uma nova volta do
processo de acumulação primitiva. O caso islandês é um caso clássico, porque
eram quatro bancos que tinham dívidas enormes fora do país e que diziam que
agora o estado socializasse suas dívidas, preservando sua dinâmica de
acumulação.
E o caso chileno, bem, é a crítica a um processo de
concentração que é o elemento fundamental do horizonte neoliberal, o qual não é
exatamente uma forma de gestão social, é uma forma de recolocar no centro do
processo econômico uma dinâmica de acumulação primitiva. Então eles percebem que,
se isso aconteceu, é porque você tem uma estrutura política que não é imune a
isso, que é completamente permeada por esse tipo de pressão, então é necessário
você quebrar institucionalmente o processo que garante isso, e reconstituir a
institucionalidade da vida nacional.
Recentemente, você fez comparações, em artigos e palestras,
entre a esquerda brasileira e figuras como Jeremy Corbyn e Bernie Sanders. E,
em outra chave, também fez uma colocação que repercutiu bastante, sobre a
necessidade de “dividir, para depois poder unir”. Pode falar um pouco de como
analisa esses personagens do cenário internacional, Corbyn e Sanders, que
aparecem como contraponto a uma onda de direita e extrema-direita que vinha, e
resgatar para os nossos leitores o sentido daquela comparação com a esquerda
brasileira?
Veja que vergonha, onde a esquerda brasileira chegou? Um
candidato do Partido Democrata e o líder do Partido Trabalhista, estão a
anos-luz de radicalidade de qualquer partido ou de qualquer organização da
esquerda brasileira – Vladimir Safatle
Então, essa
discussão, não é que eu reconheça o Bernie Sanders e o Corbyn como uma espécie
de horizonte normativo para as lutas da esquerda mundial, não era isso. Era
simplesmente para insistir: veja que vergonha, olha que coisa pavorosa, onde a
esquerda brasileira chegou? Um candidato do Partido Democrata e o líder do
Partido Trabalhista, estão a anos-luz de radicalidade de qualquer partido ou de
qualquer organização da esquerda brasileira que seja minimamente relevante
eleitoralmente. Acho que é uma questão a se pensar: pega o programa do Sanders,
ele tem tópicos que ninguém na esquerda brasileira, ninguém, nem PT, nem PSOL,
nem nada, chegou sequer a cogitar colocar como programa. Por exemplo, a ideia
de que 20% das ações de todas as empresas devem ser dispostas para os
trabalhadores; de que os boards [conselhos de administração] das empresas devem
ter pelo menos metade de trabalhadores na sua constituição; leis de restrição a
concentração e oligopólio financeiro, nada disso tem nenhum programa
brasileiro; ou o programa ecológico do Corbyn…
Para um país que passou por três catástrofes ambientais em
um ano, catástrofes monstruosas, você tem um autismo ecológico da esquerda que
é uma coisa inacreditável. Então é simplesmente para dizer: o Brasil é um país
onde até a esquerda radical é moderada, então isso deve ser realmente pensado,
no sentido forte do termo. Aí o que acontece, quando a gente tem uma situação
de radicalização como agora? A esquerda é a primeira a fazer um horizonte
legalista, um horizonte de frente ampla, de defesa da democracia…
Esse é um horizonte que é o horizonte clássico, tradicional
da política brasileira, se você pega, por exemplo, o Marighella falando do
papel do PCB nos anos 40 e 50, ele vai fazer o mesmo tipo de crítica: vocês
entraram numa lógica aliancista, de aliança com setores ditos progressistas da
burguesia, que só conseguiu travar qualquer possibilidade de auto-organização
da classe trabalhadora. E é isso que vai acontecer de novo, na verdade, vai
acontecer uma coisa ainda pior, vai acontecer uma coisa como a que ocorreu na
Itália: todo mundo se organiza contra o Berlusconi, você vai criando uma massa
completamente indigesta e indiferenciada, e no final das contas quando o
Berlusconi cai ainda aparece um sujeito mais radical, que é o único que fez
política, enquanto os outros ficam lá tentando reagir, ou resistir, ou qualquer
coisa que o valha. Eu temo que esse é o verdadeiro modelo da esquerda
brasileira.
O Brasil é um país onde até a esquerda radical é moderada,
então isso deve ser realmente pensado, no sentido forte do termo – Vladimir
Safatle
Passando para o nosso último bloco, que é justamente sobre o
Brasil. Em primeiro lugar, saber como você tem analisado o próprio governo Bolsonaro
e suas principais medidas.
Eu diria o seguinte, o governo Bolsonaro faz tudo certo.
Infelizmente, se tem alguém que sabe fazer política nesse país, é o Bolsonaro.
Dentro da lógica dele, ele fez tudo correto: chamá-lo de inepto, de inapto, é
simplesmente uma espécie de delírio de superioridade moral e intelectual que
acomete a esquerda nesses momentos dramáticos. Ele sabe que o Brasil é
ingovernável, que não é possível governar o Brasil, não nesse modelo. E ele faz
um pouco a velha dinâmica “eu contra todos”: eu estou no governo, mas eu não
consigo governar; não consigo, porque o Supremo Tribunal não deixa, porque o
Parlamento não deixa, porque meu partido não deixa, porque a imprensa não
deixa, porque ninguém deixa. Ou seja, isso lhe permite entregar muito pouco, e
ainda continuar mobilizando um setor fundamental da sociedade, que é mais ou
menos 30%, e que se consolidou ideologicamente em torno dele, ou seja, ele
conseguiu criar um bastião ideológico.
Esses 30% não vão cair, porque eles têm uma adesão
ideológica, no sentido tradicional do termo, toda a pauta ideológica,
neofascista, de extrema-direita, ele conseguiu consolidar. Então o que ele faz?
Ele espera um momento de ruptura, porque ele sabe que esse momento vai vir, ele
sabe que você vai ter… você vai vendo, as convulsões sociais à sua volta, uma
hora isso vai chegar no Brasil. E ele já está preparado para isso, e a esquerda
não está preparada. Ele está preparado, porque ele vai fazer duas coisas, ele
vai agir de uma forma brutal, como já tem dito, e ele vai dizer: “olha, eu
preciso fortalecer o governo, porque tem um caos, e eu nunca consegui governar
porque todas essas instituições me atrapalharam, e a situação agora é uma
situação excepcional, então agora a gente vai partir para uma experiência
ditatorial mais explícita”; é isso, esse é o seu horizonte.
Pegando um aspecto específico do governo, que se liga a uma
ideia que está presente em algumas das suas últimas palestras: como você vê o
Sérgio Moro, que veio da operação Lava Jato e, agora, com esse pacote
anticrime, qual a relação dele com esse projeto, e na verdade, talvez mais
amplamente, aquela ideia que temos visto em algumas colocações suas, de que aos
olhos do próprio Estado no Brasil existe uma separação na sociedade entre os
brasileiros “matáveis” e os “não-matáveis”. Como se relaciona com esse pacote
anticrime do Moro e com a crítica da transição pós-ditadura que a gente teve
aqui no Brasil?
Bom, a primeira coisa é que o Moro é uma peça fundamental de
todo esse processo, ele é o segundo na linha sucessória, assim que o Bolsonaro
cair ele, vai estar à frente, então você já tem uma linha sucessória em
operação desde o início. Os seus interesses eleitorais são explícitos. Ele é
uma figura própria das tragédias mais sórdidas de Shakespeare, é uma coisa da
ordem do Eduardo II, um sujeito que na verdade se serve da posição de juiz para
prender o candidato que poderia ocupar o cargo que ele quer ocupar. Tudo que
ele fez foi porque ele quer ser presidente da República, é uma coisa próxima do
inimaginável. Agora, é claro, a despeito dessas questões da ordem dos
interesses pessoais, é claro que ele expressa de uma maneira muito clara a
natureza necropolítica, necrofascista, do Estado brasileiro. O seu pacote é
muito evidente nesse sentido.
O Estado brasileiro tem como única função operar em graus
inimagináveis de violência contra sua própria população, é um Estado baseado no
extermínio, no desaparecimento – Vladimir Safatle
O Estado brasileiro tem como única função operar em graus
inimagináveis de violência contra sua própria população, é um Estado baseado no
extermínio, no desaparecimento, é um Estado baseado nas formas mais brutais de
morte sem sepultura que você possa imaginar; e isso como prática normal de
governo. A prática normal de governo no Brasil é essa. Independentemente de
qual seja o partido, isso nunca mudou, pode ter ficado mais explícito em alguns
momentos, ou mais implícito em outros momentos, mas era uma questão de visibilidade,
não era uma questão de mudança de práticas.
Então se tem alguma coisa que é necessário fazer nesse país
é quebrar a máquina necropolítica do Estado brasileiro, que opera
cotidianamente, que teve na sua experiência ditatorial a consolidação do seu
aparato institucional, a consolidação das polícias militares, as práticas
ostensivas de tortura, as operações punitivas nas periferias, os assassinatos a
esmo, como forma de gestão do medo social; todo esse tipo de coisas que nós
conhecemos muito, muito bem, e preferimos não lembrar. Ele [Moro] é a expressão
máxima disso, a expressão descomplexada disso. Então, de fato, de todos os
personagens talvez ele seja de fato o pior. E é claro que esse pacote anticrime
entra nesse horizonte onde você tem medidas econômicas que são medidas
concentracionistas, são medidas econômicas de destruição de qualquer
possibilidade de resistência econômica da classe trabalhadora, e é claro que
eles sabem fazer contas, sabem que isso produz conflito social. Então por isso
que vai uma medida junto com a outra, vai o aprofundamento da estrutura
destruidora do Estado brasileiro junto com essas medidas econômicas.
Chegando a nossa última pergunta. É comum ouvir discursos
vindos dos próprios centros dirigentes da esquerda brasileira de que não há
lutas mais radicalizadas até o momento, apesar dos enormes motivos para tal,
porque os trabalhadores e o povo não querem. Em certa medida esses setores
terminam se apoiando num senso comum, elaborado ideologicamente pelas classes
dominantes, do mito do brasileiro pacífico e cordial. E esse é um dos elementos
sobre o qual a esquerda brasileira tradicional se apoia para projetar nos
trabalhadores e no povo uma passividade que é criada por ela. Como você avalia
isso hoje, frente a fatos como a soltura do Lula e as esperanças eleitorais que
isso deflagra? E como romper esse ciclo de passividade e conciliação e abrir
caminho para uma alternativa de esquerda distinta?
Olha, esses setores da esquerda tradicional, eles são
cúmplices de todo o aparato de violência que produz essa ilusão de passividade,
porque eles no governo não fizeram nada, absolutamente nada para desmontá-lo.
Ao contrário, eles deixaram isso operar e eles se aproveitaram dessa situação.
Então eles são parte do problema, eles não são parte da solução. Porque falar
uma coisa dessas é de uma demência absoluta, porque na verdade o que acontece é
que você tem uma população que… bem, eu sugiro o seguinte: suba o Complexo do
Alemão, e você vai poder encontrar barricadas nas ruas contra os caveirões da
polícia, você vai poder ouvir as mães de filhos assassinados dizendo do tipo
não só de assassinato a seco, mas também a humilhação cotidiana mesmo com os
filhos assassinados, você vai poder encontrar balas de fuzil nos tetos, que
mostram cotidianamente o que ocorre, daí você vai entender por que o povo não
se revolta; talvez aí eles consigam entender um pouco quando eles perceberem o
grau de política de extermínio ao qual essa população está submetida…
Talvez eles possam entender, então, o que isso significa. E
mesmo assim, ao contrário: esse povo se revolta, eles fazem mobilização, eles
fazem manifestação, eles desafiam a polícia, eles desafiam as milícias, eles
desafiam o tráfico, então isso, até do ponto de vista moral, é uma das coisas
mais ignóbeis que se possa falar do povo brasileiro. Porque o povo brasileiro é
um povo de uma história, que é uma história de luta contínua.
Agora, é claro, eles precisam desse tipo de coisa para poder
justificar sua própria inércia, para poder justificar seu próprio modelo de
compreensão de luta política, que é uma luta política própria da Nova
República; são as lutas palacianas, são as lutas florentinas, são as lutas dos
conchavos, são as lutas dos processos eleitorais travados. Porque são processos
eleitorais em que você vai tendo certas coalizões que são feitas para te
travar, para depois você entrar no governo e falar “olha, eu não posso fazer
nada porque a correlação de forças não me permite”, todo esse tipo de coisa.
A política não vive de resistência, ela vive da constituição
de novos horizontes, e a capacidade de constituição de novos horizontes da
esquerda brasileira, hoje, é nula – Vladimir Safatle
Isso está insuportavelmente jogado na cara do povo
brasileiro há décadas, então eu diria o seguinte: a gente precisa lembrar de
uma outra história da esquerda brasileira, que não é essa história do populismo
de esquerda que nos assombra desde os anos de 1940, desde um certo alinhamento
da esquerda brasileira com o varguismo, e que continuou, continuou com o
petismo, e tende a continuar, infelizmente. Eu diria que a gente precisa
recuperar uma outra história, que é uma história de radicalização e de luta;
que é constitutiva da nossa experiência. E compreender que o que aconteceu no
Brasil nesses últimos anos foi o colapso desse modelo populista de esquerda.
Entrando agora na questão sobre a soltura do Lula, porque o
Lula é a expressão máxima disso: o que o Lula faz é exatamente o que as figuras
dentro desse modelo de corporação social fazem, ele vai tentar articular
alianças, ele vai fazer aquele tipo de promessas contraditórias: ele promete
pra você uma coisa, vai prometer pra você radicalização, vai prometer pro outro
moderação; pra você uma mudança de processo econômico, pro outro ele vai dizer
que não, não, vamos preservar o parque produtivo; aquela coisa de sempre. E
tentar reinstalar e reinstaurar, mais uma vez, isso, é só repetir uma
catástrofe. É claro que como você tem desespero enorme da sociedade brasileira
diante dessa ascensão neofascista, então o que aparecer as pessoas seguram…
Só que o fato é que a política não vive disso, ela não vive
de resistência, ela vive da constituição de novos horizontes, e a capacidade de
constituição de novos horizontes da esquerda brasileira, hoje, é nula. E é por isso
que ela não consegue sair dessa sua posição defensiva, ela é incapaz de dizer
para a sociedade brasileira: “olha, o que a gente quer agora do processo
econômico?, o que a gente quer da institucionalidade política?”. A única coisa
que ela consegue falar é sobre questões vinculadas a dinâmicas sociais de
reconhecimento, que são absolutamente fundamentais, essas questões que dizem
respeito à situação de vulnerabilidade e de opressão de vários setores da
sociedade brasileira, mas essa é a única coisa que ela consegue colocar na
pauta, porque ela não tem coragem de oferecer mais nada, e isso infelizmente
não é suficiente.
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