Vomitado de um profundo coma, um
homem acorda. Anos se passaram, constata. E ao olhar o falso calendário, a
medida em que o sentimento de desorientação pesava com maior intensidade, ele
resolveu abandonar sua gaiola sofregamente. Aprontou a máscara e a fantasia,
para poder se proteger do frio dolorosamente real que rondava lá fora. Um
coração apressado regia seus passos intermitentes, ecoando na imensidão daquele
cômodo. Porque escapar já não era mais uma indagação, e sim um imperativo.
Feito isto, ele rodou a chave e abriu a pesada porta enferrujada.
A neblina
cerrava o horizonte, dissuadindo a todos para que permanecessem em suas tocas.
Fora assim por muito tempo. Não se recordava ao certo quando essa imposição
começara; ela transcendia sua vida. Visualizando em cacos o que deveria ser um
lago congelado, ele não hesitou em abandonar o asfalto e pisar na terra, abaixo
do gelo. Onde estão as estrelas. Logo lá. Os homens daqui já não as enxergam, e
aqueles que dispõem do tesouro de observá-las já não dão a mínima. Os olhos não
vêem, e o coração não sente. Vagando por um tempo indeterminado, os pés
conspiravam em doer. Há
quanto tempo não andava no mundo real? Andara antes. Não, retire isso. Você não
andava – se deixava levar. Um galho na relva prenunciava o bosque à frente,
convidativo, porém inexplorado.
Escondido
nos grotões da mata interior, ele compreendeu que toda sua vida tinha sido um
erro. Desprovida de qualquer um propósito. Não havia fé, nem amor capazes de
salvá-la. O mundo muito menos. Uma quietude extrema o apossou, como se todos
seus átomos clamassem por aquela constatação. E de maneira inusitada, o
reconhecimento de não se ter um propósito virou um propósito. Uma lúcida
filosofia, dessas que se agarram a uma vida como um filho à mãe, recompensando
serenidade.
Depois de
demasiado sofrimento, ele enfim se tornara homem. Um homem banal, aquele ao
qual ele tanto relutara ser? E a paz ele alcançara, algo inexistente até então.
Mas quem sabe sofrer fosse a fatalidade do pensar? Quem sabe viver como animal
é a maior dádiva de Deus. Somente a Ele cabe a permanência, ao homem resta
apenas conformar. Dar forma ao presente, como homem e apenas homem. Cabia a ele
escolher entre o sofrimento da não-verdade ou a resignação da verdade. Eis a
questão. E sim, era essa consciência que caracterizava o homem.
Viver é
experimentar o que não se gosta, satisfazer com o insensato. É dirigir sem
pensar. Movimento, velocidade constante, incessante. Chama que se apaga.
Efeméride efêmera. Angústia sem fim, ingratidão para quem vive.
E-X-P-L-O-D-I-R
- ele tinha convicção de que despedaçaria em incontáveis recortes do cotidiano,
fadados à repetição aleatória.
Desculpem,
mas a verdade foi feita para ser dita. E a verdade os salvará.
Gustavo Delaqua
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