sábado, 30 de dezembro de 2017

O caráter destrutivo


1931



É possível que alguém, ao fazer um retrospecto de sua vida, verifique que quase todas as ligações mais profundas que ele experimentou, tenham partido de indivíduos sobre cujo "caráter destrutivo" todo o mundo estava de acordo. Esbarraria um dia, talvez casualmente, nesse fato, e quanto mais duro fosse o choque, tanto maiores seriam suas chances de representar o caráter destrutivo.

O caráter destrutivo conhece apenas uma divisa: criar espaço; conhece apenas uma atividade: abrir caminho. Sua necessidade de ar puro e de espaço é mais forte do que qualquer ódio.

O caráter destrutivo é jovem e sereno. Pois destruir rejuvenesce, porque afasta as marcas de nossa própria idade; reanima, pois toda eliminação significa, para o destruidor, uma completa redução, a extração da raiz de sua própria condição. O que leva a esta imagem apolínea do destruidor é, antes de mais nada, o reconhecimento de que o mundo se simplifica terrivelmente quando se testa o quanto ele merece ser destruído. Este é o grande vínculo que envolve, na mesma atmosfera, tudo o que existe. É uma visão que proporciona ao caráter destrutivo um espetáculo da mais profunda harmonia.

O caráter destrutivo está sempre atuando bem disposto. A natureza lhe prescreve o ritmo, pelo menos indiretamente: pois ele deve adiantar-se a ela, do contrário ela própria assumirá a destruição.

O caráter destrutivo não se fixa numa imagem ideal. Tem poucas necessidades, e a menos importante delas seria: saber o que ocupará o lugar da coisa destruída. Primeiramente, pelo menos por um instante, o espaço vazio, o lugar onde se encontrava a coisa, onde vivia a vítima. Certamente vai aparecer alguém que precise dele, sem ocupá-lo.

O caráter destrutivo executa seu trabalho, evitando apenas trabalhos criativos. Assim como o criador busca a solidão, assim também o destruidor precisa cercar-se continuamente de pessoas, de testemunhas de sua eficácia.

O caráter destrutivo é um sinal. Assim como um sinal trigonométrico está exposto ao vento, de todos os lados, assim também ele está exposto, por todos os lados, aos boatos. Não tem sentido protegê-lo contra isso.

O caráter destrutivo não tem o mínimo interesse em ser compreendido. Considera superficiais quaisquer esforços nesse sentido. O fato de ser mal entendido não o afeta. Ao contrário, ele provoca mal entendidos, assim como o faziam os oráculos - essas instituições políticas destrutivas. O fenômeno mais pequeno-burguês, o falatório, só acontece porque as pessoas não querem ser mal entendidas. O caráter destrutivo não se importa de ser mal entendido; ele não fomenta o falatório.

O caráter destrutivo é o inimigo do homem-estojo. O homem-estojo busca sua comodidade, e a caixa é sua essência. O interior da caixa é a marca, forrada de veludo, que ele imprimiu no mundo. O caráter destrutivo elimina até mesmo os vestígios da destruição.

O caráter destrutivo se alinha na frente de combate dos tradicionalistas. Uns transmitem as coisas na medida em que as tomam intocáveis e as conservam; outros transmitem as situações na medida em que as tornam palpáveis e as liquidam. Estes são chamados destrutivos.

O caráter destrutivo tem a consciência do indivíduo histórico cuja principal paixão é uma irresistível desconfiança do andamento das coisas, e a disposição com a qual ele, a qualquer momento, toma conhecimento de que tudo pode sair errado. Por isso, o caráter destrutivo é a confiabilidade em pessoa.

O caráter destrutivo não vê nada de duradouro. Mas, por isso mesmo, vê caminhos por toda a parte. Mesmo onde os demais esbarram em muros ou montanhas, ele vê um caminho. Mas porque vê caminhos por toda a parte, também tem que abrir caminhos por toda a parte. Nem sempre com força brutal, às vezes, com força refinada. Como vê caminhos por toda a parte, ele próprio se encontra sempre numa encruzilhada. Nenhum momento pode saber o que trará o próximo. Transforma o existente em ruínas, não pelas ruínas em si, mas pelo caminho que passa através delas.

O caráter destrutivo não vive do sentimento de que a vida vale a pena ser vivida, e sim de que o suicídio não compensa.


Walter Benjamin

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