A franqueza é a primeira virtude de um defunto
Brás Cubas
Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e
realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um
defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das
cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os
remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o
melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os outros, embaça-se um homem
a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e
a hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas, na morte, que diferença! que
desabafo! que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso
as lentejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente
o que foi e o que deixou de ser! Porque, em suma, já não há vizinhos, nem
amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos; não há platéia. O olhar da
opinião, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o
território da morte; não digo que ele se não estenda para cá, e nos não examine
e julgue; mas a nós é que não se nos dá do exame nem do julgamento. Senhores
vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados.
Machado de Assis, CAPÍTULO XXIV "Curto, mas
alegre", Memórias Póstumas de Brás Cubas
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