Valerio Arcary
“A cordialidade…a lhaneza no trato, a hospitalidade, a
generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam,
representam com efeito um traço definitivo do caráter brasileiro.”
Sergio Buarque de Holanda[1]
A meritocracia é hoje uma das ideologias mais poderosas no
Brasil. Mas a influência deste critério liberal é, relativamente, recente e
coincide com a urbanização acelerada, sobretudo a partir dos anos trinta do
século XX.
A meritocracia defende a igualdade de oportunidades.
Argumenta que processos de seleção devem ser organizados tendo como critério
central o esforço ou a aptidão, o empenho ou o valor, portanto, o merecimento.
Para qualquer pessoa razoável parece mais justo o critério meritocrático do que
o hereditário ou o do favor. Porque é mais equitativo do que o parentesco, mais
lícito do que a confiança, e menos aleatório do que o sorteio. Certamente é
melhor o critério da capacidade do que a consanguinidade, melhor a destreza do
que o compadrio, melhor a dedicação do que o favorecimento. Esse é o limite do
liberalismo: a equidade, ou seja, a igualdade de oportunidades.
O Brasil era tão reacionário até poucas décadas atrás que
ser liberal era confundido com ser de esquerda. Mas é bom saber que a
meritocracia corresponde a uma visão liberal do mundo, portanto, uma ideologia
burguesa. O socialismo defende a igualdade social. A igualdade de oportunidades
não é a igualdade social. É progressiva quando comparada aos critérios pré-capitalistas
que favoreciam o parentesco ou o apadrinhamento. Mas é regressivo quando
comparado com o socialismo.
Por exemplo: o critério meritocrático é aquele que defende
que devem estudar na universidade pública aqueles que foram aprovados nos
exames de acesso, portanto, os mais preparados. O critério socialista é que
todos devem poder ter acesso ao ensino superior. E enquanto isso não for
possível, o critério socialista é a defesa de cotas sociais e raciais para
favorecer os mais desfavorecidos compensando a desigualdade. No Brasil arcaico
só podia fazer curso superior os que pertenciam à classe dos proprietários,
quem podia pagar, ou quem “ganhava” o favor de uma vaga.
A meritocracia ganhou hegemonia ideológica no Brasil muito
lentamente. Foi lento o processo porque houve resistência. E não nos
surpreendamos se ainda há relutância. Prevaleceu durante muitas gerações uma
inserção social quase hereditária: os filhos dos sapateiros, ou dos alfaiates,
ou dos comerciantes, ou dos médicos, engenheiros, advogados herdavam o negócio
dos pais. A grande maioria do povo não herdava nada, porque eram os
afrodescendentes do trabalho escravo, predominantemente, agrário.
A mobilidade social era muito baixa. O Brasil agrário era
uma sociedade muito desigual e rígida, quase estamental. Era estamental porque
os critérios de classe e raça se cruzavam, forjando um sistema híbrido de
classe e castas que congelava a mobilidade. A ascensão social era somente
individual e estreita. Dependia, essencialmente, de relações de influência,
portanto, de clientela e dependência através de vínculos pessoais: o pistolão.
O critério de seleção era de tipo pré-capitalista: o parentesco e a confiança
pessoal.
A cordialidade e a resistência à meritocracia
Sergio Buarque de Holanda foi o primeiro que deu importância
ao tema da resistência ideológica ao liberalismo no livro Raízes do Brasil,
publicado em 1936. Muitos interpretaram, erroneamente, que ele estaria
defendendo que o conceito de “homem cordial” era mesmo uma imagem que remetia
somente a uma afetuosidade natural, uma gentileza autêntica, uma presteza no
trato. Outros concluíram, mais rapidamente ainda, que o conceito da
cordialidade buscava capturar as consequências positivas de um tipo de
colonização que tolerou a miscigenação racial. Mesmo se baseada na escravidão,
teria evitado as formas violentas de discriminação e apartação como nos EUA e
na África do Sul e explicaria a colaboração social pela via individual da busca
do favorecimento e clientela.
Nos anos trinta a sociologia estava ainda prisioneira do
paradigma da busca da compreensão do caráter nacional de cada povo e, portanto,
se dispersava em construções ideológicas. A visão do Brasil como um país de
povo dócil e intensamente emocional correspondia às necessidades da classe
dominante. Uma nação em que, apesar das desigualdades econômicas abissais, se
manteria uma incomum coesão social.
Sergio Buarque tinha outra preocupação. Percebia que a
cordialidade do brasileiro era uma forma cultural de luta pela sobrevivência e
adaptação a um sistema no qual a ascensão social dependia do favorecimento. A
cordialidade ocultava a imensa brutalidade das relações sociais, camufladas
através de uma intimidade falsa, expressão do controle privado do espaço
público. A cordialidade era expressão do medo da miséria e do imenso atraso
histórico. Ao mesmo tempo, uma manifestação no terreno dos costumes da
resistência cultural de um povo. Da cordialidade veio o “jeitinho”, ou seja, a
ideologia da improvisação: a consagração do drible das regras universais, da
frieza da lei igual para todos. Da cordialidade veio o elogio do “levar
vantagem”, a ideologia da conivência com a conveniência, portanto, a legitimação
do proveito, a cumplicidade com a corrupção.
A cordialidade foi a mãe do “jeitinho”. Essa foi a forma
histórica encontrada de garantir mobilidade social individual em uma sociedade
rígida: através de relações pessoais de compadrio e favor para preservar a paz
social e encontrar a solução de conflitos. Prevaleceu o recurso de saídas
negociadas e concertadas.
A cordialidade é uma forma de oportunismo, e o oportunismo
não é uma jabuticaba brasileira. É mundial. Mas o oportunismo, ou seja, o vale
tudo na luta pela ascensão social, assumiu em diferentes sociedades diferentes
formas de legitimação. A cordialidade foi a forma cultural específica do
Brasil: a tolerância com a bajulação, o fascínio pela lisonja, o consentimento
da submissão, a anuência com o embuste remetem ao fim tardio da escravidão.
Esta forma arcaica de dissimulação como estratégia individual de mobilidade
social ainda sobrevive em um amálgama cultural único.
A meritocracia como pilar de uma visão liberal do mundo
Não obstante, muita gente na esquerda interpreta a defesa da
meritocracia como uma ideologia reacionária, e não estão errados. A
meritocracia está preocupada, também, com a ascensão individual, porém, é um
dos alicerces da ideologia liberal e, portanto, reivindica o princípio da igualdade
formal: todos seriam iguais diante de direitos e deveres universais, ou seja,
diante da lei. A meritocracia é uma ideologia de conservação da desigualdade
social. Ela defende que é necessário tratar os desiguais de forma igual. Isso
só pode resultar, evidentemente, na reprodução da desigualdade.
O critério socialista é tratar os desiguais de forma
desigual, favorecendo mais oportunidades para os que nunca tiveram oportunidade
alguma. O tema, no entanto, é mais complicado. É impossível imaginar uma
experiência de transição ao socialismo, portanto, uma etapa histórica em que
ainda é necessária uma regulação da escassez, sem que o critério meritocrático
seja utilizado. Quando é necessária uma seleção, critérios transparentes são
indispensáveis. A meritocracia pode ser regulada com outros critérios, como
cotas sociais e raciais, mas não pode ser dispensada. Não foi por outra razão
que os bolcheviques mantiveram os especialistas em suas funções depois da
vitória da revolução de Outubro. Fosse nas Forças Armadas, na gestão das
empresas ou nas Universidades, foi indispensável aproveitar os quadros de maior
instrução ou experiência que tinham se formado sob o regime czarista.
É verdade que quando deixa de ser somente um critério e se
agiganta como uma concepção do mundo a meritocracia se transforma em pilar da
ideologia liberal, e passa a ser muito perigosa. A ideologia meritocrática não
somente aceita, mas defende que a desigualdade social tem um fundamento
racional e, portanto, necessário. Classes sociais diferentes seriam um
resultado natural de um processo de diferenciação que repousaria na
desigualdade natural. Esta conclusão é falsa.
O lugar de cada um na sociedade corresponderia, ou deveria
corresponder ao vigor ou ao talento. Os meritocráticos sublinham o papel da
educação, mas também da vocação. A hierarquia social seria justa, desde que
ordenada pela meritocracia.
A classe média é uma presa fácil da ideologia meritocrática
Não surpreende que ela seja uma ideologia tão poderosa na
classe média da sociedade contemporânea. A classe média se reconhece a si
própria com um grupo social que ascendeu em função do mérito. Os
pequeno-burgueses que têm seus próprios negócios e que são muito dedicados ao
seu trabalho e, por isso, têm orgulho da sua dedicação reivindicam,
furiosamente, a meritocracia. Furiosamente, porque resistem às políticas
compensatórias, e se opõem ao direito dos trabalhadores de usarem a sua força
social para se defender com seus métodos de luta, como a greve.
As novas camadas médias urbanas que ascenderam em função da
elevação da escolaridade são, também, orgulhosas dos sacrifícios que fizeram
para se educar. Acreditam que o Brasil seria o melhor dos mundos, não fosse a
corrupção. As classes médias no mundo contemporâneo são muito heterogêneas, e
não têm e não podem ter um projeto para sociedade. Seguirão uma das duas
classes mais fortes: capital ou trabalho.
No Brasil, ao final da década de 1970, elas se inclinaram à
esquerda, embora com oscilações, como as ilusões em relação ao Cruzado em 1986,
ou o apoio ao Real entre 1994/98: seus humores políticos traduziam um crescente
mal-estar diante da estagnação prolongada da economia, o enrijecimento do
processo de mobilidade social, o custo dos impostos depois da Constituição de
1988, e a corrupção crônica. Defensora intransigente da meritocracia como
critério de ascensão social, a classe média, embora dividida, esteve presente
nas Diretas em 1984, e sentiu a pressão do proletariado nas suas formas de luta
e organização, durante os anos 1980.
A partir dos anos 1990 a classe média passou a temer, com a
mesma intensidade com que se deslocou para a oposição à ditadura, o peso dos
impostos, o castigo do desemprego dos filhos, e se ressentiu pela insegurança
crescente e pelo perigo da delinquência. O intervalo da década passada, uma
fase de crescimento econômico e maior colaboração de classes trouxe uma
sensação de alívio que já desapareceu.
[1] Buarque de Holanda, Sergio. Raízes do Brasil. São Paulo,
Companhia das Letras, Terceira Edição, 1997.
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