Publicado em 24/10/2014 | ADRIANO CODATO E FÁBIA BERLATTO
O racismo de classe explicitado nas eleições brasileiras
deste ano ultrapassou os limites da convivência civilizada. Autorizar-se a
exibir ostensivamente preconceito social, discriminação regional, superioridade
étnica em relação à categoria social dos pobres, ao contrário do que se pensa,
não é um direito autêntico da sociedade democrática. Por quê? Porque pressupõe
e defende hierarquias “naturais”, “culturais” e, com base nelas, cria duas
classes de pessoas: os politicamente competentes e os politicamente
incompetentes.
O racismo de classe funciona conforme a mecânica perversa de
todo o preconceito. Enquanto no racismo tradicional o sentimento de
superioridade é dirigido a uma etnia (“raça”) considerada inferior, seja por
razões biológicas, seja por razões históricas, o racismo de classe se dirige a
um grupo por suas características socioeconômicas e constrói, sobre ele, toda
sorte de fantasias. Os pobres são ignorantes porque desconhecem as informações
verdadeiras que nós possuímos sobre os políticos, a economia etc. São
irracionais, porque as razões que dirigem seu voto são ilegítimas para nossas
prioridades. E são incompetentes, porque, afinal, são pobres.
Três exemplos ajudam a ilustrar o que estamos falando. Em
setembro, a Associação Comercial e Industrial de Ponta Grossa editou um manual
defendendo que os favorecidos pelo Bolsa Família tivessem seus direitos
políticos suspensos. Em outubro, publicados os resultados do primeiro turno, o
ódio “aos nordestinos” voltou mais agressivo e menos constrangido do que em
2010. Agora, conforme a campanha eleitoral foi se tornando mais competitiva, o
delírio do anticomunismo, mais extrovertido, e as oposições, mais confiantes,
um economista de televisão pontificou no Facebook que “quem estuda não vota na
Dilma”. O esplendor dessa campanha foi atingido por um colunista social que
sugeriu trancar em casa, no dia da eleição, as empregadas domésticas e os
porteiros dos prédios para que não votassem na situação.
Segundo o conhecimento comum, o preconceito é filho da
ignorância. O otimismo dessa sentença moral está em acreditar que os dados
objetivos e o diálogo racional funcionem como instrumento de dissuasão e de
pacificação. Ocorre que a psicologia do racismo é alimentada pela paixão e pelo
medo. Assim, pouco importa demonstrar que beneficiários de programas sociais
não votam, como autômatos, “no PT”, nem se convertem, como fanáticos, em
petralhas. Votam racionalmente e preferencialmente na “situação”, isto é, no
governo, em qualquer governo. Ou que a divisão do voto no Brasil (agora e em
2010) não é geográfica, mas social.
As opiniões preconceituosas não são, entretanto, apenas
falta de modos civilizados ou intolerância. Elas são também a expressão de um
mal-estar maior. O que aparece como condenação ao governo de hoje (seus feitos
e malfeitos) é, na realidade, uma condenação da própria política.
Campanhas de oposição a governos podem ser politicamente
agressivas, exibir estatísticas verdadeiras, manipular outras informações nem
tão verdadeiras, e reafirmar fanaticamente as convicções partidárias mais
delirantes. Campanhas pró-governo, idem. Mas o que não se pode fazer, numa
sociedade democrática, é advogar a ideia de que há duas classes de pessoas: as
que votam bem e as que votam mal. A ideia liberal “um homem, um voto” até pode
ser uma ficção jurídica, mas, no contexto em que vivemos, tem sua função
civilizadora.
Adriano Codato, doutor em Ciência Política pela Unicamp, é
professor de Ciência Política na UFPR, editor da Revista de Sociologia e
Política (UFPR) e da revista Paraná Eleitoral (TRE-PR) e coordenador do
Observatório de elites políticas e sociais do Brasil. Fábia Berlatto,
doutoranda em Sociologia, é professora do curso de Especialização em Sociologia
Política na UFPR e integrante do Centro de Estudos de Segurança Pública e
Direitos Humanos da mesma universidade.
Fonte : Gazeta do Povo.
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