"Com suas voltas e reviravoltas, as aventuras de Dom
Quixote traçam o limite: nelas terminam os jogos antigos da semelhança e dos
signos; nelas já se travam novas relações. Dom Quixote não é o homem da
extravagância, mas antes o peregrino meticuloso que se detém diante de todas as
marcas da similitude. Ele é o herói do Mesmo. Assim como de sua estrita
província, não chega a afastar-se da planície familiar que se estende em torno
do Análogo. Percorre-a indefinidamente, sem transpor jamais as fronteiras
nítidas da diferença, nem alcançar o coração da identidade. Ora, ele próprio é
semelhante a signos. Longo grafismo magro como uma letra, acaba de escapar
diretamente da fresta dos livros. Seu ser inteiro é só linguagem, texto, folhas
impressas, história já transcrita. É feito de palavras entrecruzadas; é ESCRITA
ERRANTE no mundo em meio à semelhança das coisas. Não porém inteiramente: pois,
em sua realidade de pobre fidalgo, só pode tornar-se cavaleiro, escutando de
longe a epopéia secular que formula a Lei. O livro é menos a sua existência que
se dever. Deve incessantemente consultá-lo, a fim de saber o que fazer e dizer,
e quais signos dar a si próprio e aos outros para mostrar que ele é realmente
da mesma natureza que o texto de onde saiu. [...]. Dom Quixote desenha o
negativo do mundo do Renascimento; a escrita cessou de ser a PROSA DO MUNDO; as
semelhanças e os signos romperam sua antiga aliança; as similitudes
decepcionam, conduzem à visão e ao delírio.As coisas permanecem obstinadamente
na sua identidade irônica: não são mais do que o que são; AS PALAVRAS ERRAM AO
ACASO, sem conteúdo, sem semelhança para preenchê-las; não marcam mais as
coisas; dormem entre as folhas dos livros, no meio da poeira."
(Início do Cap. III - Representar, do livro As Palavras e as
Coisas, de Michel Foucault)
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