texto do Mário Bortolotto sobre os protestos.
...
FAZ MUITO TEMPO QUE ESTAMOS TRISTES ASSIM
(sobre ontem à noite. Mas não começou ontem à noite)
Existe um santo que é o São Wolfgang que tenta convencer o
diabo com palavras desafiando o capeta a construir uma igreja. Este é o santo
que ainda acredita no poder do convencimento a partir de argumentos. Ontem eu
tava em casa escrevendo. Como sempre, com todas as cortinas fechadas,
completamente isolado do mundo. É preciso ficar fora do mundo, pra tentar
entender com clareza o que tá acontecendo, assim como você tem que dirigir uma
peça de teatro de fora, pra poder entender a cena e ver o que realmente está
acontecendo. Então essa atitude de isolamento não é como muitos podem pensar
uma atitude alienada. E não é preciso estar sempre no olho do furacão pra sacar
o tamanho da encrenca. Então eu tava escrevendo em casa e ouvi o barulho lá
fora. E abri a janela e olhei. Tinham jogado um monte de lixo na rua
dificultando o tráfego. Algumas pessoas corriam com medo, outras mais curiosas
paravam pra olhar. Aí liguei a tv e vi as notícias. Li o que meus amigos
estavam escrevendo. O Batata me ligou do teatro e disse que a coisa tava feia.
Que teve que fechar o teatro e tiveram que cancelar a peça da Michelle pq uma
rapaziada passou tocando o terror e inclusive quebraram os vidros do carro do
Batata. Como eu fiz na noite do PCC (e inclusive escrevi um texto pra Folha de
São Paulo), simplesmente vesti minha roupa e fui pra rua ver na real o que tava
acontecendo. Subi a Frei Caneca quase deserta e totalmente atulhada de lixo. O
único bar que ficou aberto foi o da esquina da Paim (ninguém ia ter a manha de
tentar depredar aquele bar com a rapaziada que frequenta ali, sabe como é que
é). Cheguei no teatro, bati na porta, o Batata abriu e eu entrei. Mó clima de
funeral. As pessoas discursavam a favor e contra a manifestação. E também a
favor e contra a repressão. Fico imaginando se é assim mesmo, tão simples. Ou
se como em 64, vamos todos marchar com as senhoras na luta com a família com
Deus pela Liberdade acreditando que estamos mesmo do lado certo e rezando pelo
Deus verdadeiro. A história é simples. É um direito do cidadão se manifestar. O
que eu pergunto é se esse cidadão bem intencionado não está sendo apenas e tão
somente usado por um interesse politico muito maior e que ele não está se dando
conta. Sempre há interesses políticos por trás de tudo. E são esses interesses
é que valem no final. O cara morrendo no Vietnã com o retrato da namorada e
acreditando que estava morrendo pelo seu país, ou no Iraque ou em qualquer
merda de guerra que for. Marighela costumava doar 94% de seu salário para o
partido e viver com míseros 6%. Ele acreditava na causa. E acreditava também
quando roubava bancos na época da ditadura. Marighela morreu acreditando na sua
causa. Isso o transforma num herói? Se ele matou pessoas por isso, eu acredito
que não. Nunca vou transformar em herói alguém que em nome do que quer que seja
se acha no direito de tirar a vida de outro. Mas Marighela tinha convicções, e
isso eu admiro. As pessoas que foram pra rua (a maioria delas) também acreditam
que tem convicções, e isso é bacana. Acreditar é o primeiro passo. Se não fosse
o aumento de 20 centavos (é claro que esses 20 centavos são só um pretexto. É
absurdo alguém ficar indignado pq pessoas estão lutando contra um aumento de 20
centavos. Acho que todo mundo já entendeu que não são pelos 20 centavos. Se eu
tivesse um cachorro aqui em casa, ele estaria mordendo o meu pé por eu perder
tempo explicando isso) seria outro motivo qualquer. Alguém com interesses muito
maiores chegou a conclusão que esse é o momento de fazer uma manifestação
contra atitudes do governo. E essas pessoas apenas querem estar no governo num
futuro próximo e nada vai mudar. E vamos ficar nos lamentando pq em algum
momento nós acreditamos nela. E a idéia é essa mesma. Jogar a população contra
o governo. E o governo tá mais sujo que banheiro de rodoviária, né? Então é
alvo fácil. Os caras fazem por merecer. Bom, eu não votei no Haddad. Eu não
votei em ninguém. Podem me chamar de alienado, mas enquanto não aparecer alguém
que eu confie, eu não vou mais votar. Eu não voto em partidos. Voto em pessoas.
E há muito tempo nenhum político consegue me convencer. É até muito simplista
falar isso, mas o que eu posso fazer? Glauber Rocha já dizia que “política e
poesia é muito pra uma pessoa só”. Eu fico com a poesia, é claro. Eu acredito
em poetas, mesmo quando eles mentem. Eu não acredito em políticos, mesmo quando
eles falam a “verdade”. Então não tem nada a ver com polícia. A polícia é só um
instrumento muito mal utilizado pelas forças repressoras, é só isso. Mas de
qualquer maneira, sou sempre a favor de qualquer manifestação. Mas é claro que
mandaram fechar justamente a Paulista e assim prejudicar a vida de muita gente
que não tinha nada a ver com isso. Foder o transito de uma cidade como São
Paulo na hora do rush, vai atrair atenção internacional. Não é pouco. Mas é o
preço que se paga, né? E não é pelos 20 centavos. Alguém tá ganhando muito mais
com isso e com as boas intenções de quem estava participando da manifestação e
podem ter certeza que não é o estudante ou o trabalhador que vai pagar 20
centavos a menos na sua passagem de ônibus. No fim, nós estamos sempre
trabalhando pra eles. Seja se manifestando ou indo contra a manifestação. No
final, não somos nós que vamos sair ganhando. Lembram das manifestações pelas
eleições diretas? Foi bacana. Aparentemente o povo conseguiu o que queria. E aí
o Collor foi eleito. E foi o povo que colocou ele lá. Mas será que foi o povo
mesmo? Que eu saiba, a máquina é bem mais poderosa que a vontade popular (que
não tem muita noção de qual é o alvo real) e atira sempre armado de boas
intenções. Aí a manifestação acontece, muito legítima, é claro. E o tumulto
está armado. A reação estúpida da polícia agredindo pessoas. As imagens são
chocantes. Alguns policiais mais sádicos devem ter se divertido com aquilo.
Outros que estavam apenas trabalhando, deviam estar bem constrangidos por fazer
parte disso. Mas agora a população toda vai odiar a polícia. E quem é que pode
tirar a razão da população quando vc sabe que um filho seu foi agredido
covardemente? Quem vai tirar a razão de ficar revoltado do fotógrafo Sergio
Silva que foi atingido por uma bala de borracha e vai perder a visão? E no meio
disso tudo, pessoas se ferrando de ambos os lados. Enquanto os verdadeiros
responsáveis por tudo estão muito longe daqui. E podem ter certeza que eles não
vão dar a cara pra bater. Nós nem sabemos com exatidão quem são os nossos
verdadeiros inimigos. Então saímos atirando apenas. Seja bolas de borracha,
vinagre ou quebrando carros. Nos sentimos bem fazendo parte de algo, estando do
lado que nós achamos certo. Aquelas senhoras da marcha com a família em 64
achavam que estavam certas. Os caras pintadas também achavam que estavam certo.
E na verdade eles estavam apoiados em suas convicções. E um homem sem
convicções não é porra nenhuma. Muitos aproveitam esse tipo de situação pra
provocar baderna e sair depredando tudo como aconteceu ontem. Mas esses
“baderneiros” não são teletransportados da Enterprise. Eles não aparecem por
acaso, eles fazem parte do elenco contratado, não se iludam. E isso, é claro,
só tira a legitimidade de quem estava apenas (e coberto de boas intenções,
repito) querendo se manifestar contra algo muito maior do que os benditos 20
centavos a mais. Talvez já não seja mais o tempo de São Wolfgang, infelizmente.
Ninguém mais presta atenção em argumentos e no poder da palavra. As pessoas
querem ação e agem indiscriminadamente e quem age indiscriminadamente costuma
“errar no alvo”. Voltei pra casa com essa imagem triste na minha cabeça. De uma
sombra enorme pairando sobre a Avenida Paulista. E essa sombra enorme tinha uma
imagem disforme, mas era possível ver os dentes brancos aparecendo no rosto
dela. Eu sei que ela tava sorrindo. Nós aqui embaixo, estamos todos muito
tristes. Mas já faz muito tempo que estamos assim. Mas alguém tá rindo disso tudo.
Eles sempre ganham. E no final eles vão se abraçar e sorrir pras fotos. Eles
sabiam que iam vencer.
( Mario Bortolottodois)
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