quinta-feira, 18 de abril de 2013

MAIS UM POEMA E UMA OBSERVAÇÃO CRÍTICA SOBRE JORGE DE LIMA

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Tu és, ó Mira-Celi, a repercutida e o leitmotiv
que aparece ao longo do meu poema.
Nele estás construída à semelhança de um imenso órgão
movimentado pelo meu espírito.
Cresces nele paralelamente a teu desenvolvimento físico
mas incognitamente, como uma órfã dentro da multidão
Às vezes, quando dobras uma página , perguntas: "Sou eu?"
Mas olhando depois a paisagem mudar tanto, no espaço de um segundo
encontras os teus membros na nudez de uma frase.
Nunca te libertarás deste parque em que nos encerramos
fingindo dois desaparecidos,
e em que nos nutrimos um do outro contra as leis naturais.
Outras vêzes te encolhes em mim, ó minha pequena maré;
e basta que eu abra as pálpebras e a minha memória te encontre
para te recompores imediatamente
em minha maior dimensão.
As nossas respirações enchem o mundo,
achatam o mar,
agitam as palmas e as areias.
Pairamos em planos irrealizáveis à maioria das aves
com outra visão oculta em cada palavra.
Pouca gente encontrará a chave deste mistério.
E os olhos que perpassarem através de tantos poemas que não
findam e que se transformam de momento a momento,
não compreenderão o movimento perpétuo
em que nos perseguimos e nos superpomos.
Outras vezes ainda, as minhas mãos são um disfarce de ti,
escrevendo tua história ou me sustentando a face.
Ora parece marcha nupcial; és, no entanto, elegia.
Ora és sacerdotisa, musa, louca, pastora ou apenas ave.
Dei-te diversos nomes para que ninguém te acompanhe.
Anuncio que morreste para que ninguém te convide.
Quase sempre te transformo, para te distribuir.
E quando me resta uma única migalha, reconstituo-te como uma
catedral
e alimento-te como uma criancinha.
Figuramos no mapa como um sol gêmeo que num perpétuo eclipse
desse a impressão de um só núcleo.
Gravidades estranhas nos atraem; sombras tutelares protegem
a nossa rotação, em que tudo são coincidências de duas asas num corpo.
Algum sacerdote antigo já nos tinha visto, por acaso uma noite,
e morreu sem nos decifrar, pois não voltamos ainda
nem à primeira página, nem à primeira estrofe
do imenso e misterioso poema sempre por terminar.

(" Um novelo de equívocos motiva o silêncio injusto que esconde a poesia de Jorge de Lima, cujo centenário de nascimento completou-se na sexta-feira, de seu público potencial. Enterrado em parte pela vastidão e diversidade de sua obra, desigual, em que a garimpagem crítica do regionalismo e do nacional popular tem prevalecido,
jaz um filão mais raro e precioso: a poesia visualista e órfica de seu momento
final." Fábio de Souza Andrade, Folha de São Paulo, caderno Mais, 7/11/1993)

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