sábado, 20 de novembro de 2010

Como eu não possuo

Olho em volta de mim. Todos possuem

Um afecto, um sorriso ou um abraço.

Só para mim as ânsias se diluem

E não possuo mesmo quando enlaço.

Roça por mim, em longe, a teoria

Dos espasmos golfados ruivamente;

São êxtases da cor que eu fremiria,

Mas a minh’alma pára e não os sente!

Quero sentir. Não sei… perco-me todo…

Não posso afeiçoar-me nem ser eu:

Falta-me egoísmo para ascender ao céu,

Falta-me unção pra me afundar no lodo.

Não sou amigo de ninguém. Pra o ser

Forçoso me era antes possuir

Quem eu estimasse – ou homem ou mulher,

E eu não logro nunca possuir!…

Castrado d’alma e sem saber fixar-me,

Tarde a tarde na minha dor me afundo…

– Serei um emigrado doutro mundo

Que nem na minha dor posso encontrar-me?

***

Como eu desejo a que ali vai na rua,

Tão ágil, tão agreste, tão de amor…

Como eu quisera emaranhá-la nua,

Bebê-la em espasmos d’harmonia e cor!…

Desejo errado… Se a tivera um dia,

Toda sem véus, a carne estilizada

Sob o meu corpo arfando transbordada,

Nem mesmo assim – ó ânsia! – eu a teria…

Eu vibraria só agonizante

Sobre o seu corpo d’êxtases dourados,

Se fosse aqueles seios transtornados,

Se fosse aquele sexo aglutinante…

De embate ao meu amor todo me ruo,

E vejo-me em destroço até vencendo:

É que eu teria só, sentindo e sendo

Aquilo que estrebucho e não possuo.

Paris 1913 – Maio


Mário de Sá-Carneiro



Mário de Sá-Carneiro. Dispersão. Lisboa, 1914

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