sábado, 23 de outubro de 2010

As várias faces da (web) poesia


O uso da internet pelos novos poetas entra na reflexão sobre o gênero

Raquel Cozer – O Estado de S. Paulo

Questão inimaginável para gerações anteriores da poesia, o arquivamento da produção espalhada por sites, blogs e redes sociais hoje merece reflexão. Afinal, na década em que os diários virtuais se popularizaram no Brasil, boa parte dos versos disponibilizados online nunca chegou ao papel – um dos motivos pelos quais é tão pouco estudada a poesia feita na última década. “Torna-se difícil mapear a produção ciberpoética se não tivermos uma estratégia de preservação para arquivar o material que existe na internet”, diz o cearense Aquiles Alencar Brayner, curador do acervo latino-americano da British Library, no Reino Unido. Prestes a concluir mestrado sobre arquivos digitais, Brayner dará palestra a respeito na terceira edição do Simpoesia, encontro internacional que acontece do próximo dia 5 ao 7 na Casa das Rosas, em São Paulo.



Divulgação – Poema de Marcelo Sahea

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O evento é apenas um dos sinais da atenção para este cenário num momento em que os e-readers começam a chegar a País, trazendo possibilidades de experimentação – assim como a literatura infantil, a poesia é um dos gêneros que mais têm a se beneficiar com as novas tecnologias. Nos dias 13 e 14, o festival literário Artimanhas Poéticas, no Rio – que incluirá apresentações de videopoesia e performances – levantará o debate A Poesia Escrita em Outras Esferas, com a estudiosa Heloísa Buarque de Holanda, organizadora da Enter Antologia Digital, e os poetas Gabriela Marcondes e André Vallias.

O encontro com a tecnologia é um fenômeno muito anterior à internet, embora tenha encontrado nela seu meio mais propício. O recém-lançado Poesia Digital – Teoria, História, Antologias (Fapesp/Navegar, R$ 30, 80 págs. + DVD), fruto de mapeamento realizado por Jorge Luiz Antonio, pós-doutorando no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, volta mais de 50 anos no tempo para encontrar as origens da poesia eletrônica. A primeira experiência do gênero, segundo o autor, foi publicada em 1959 pelo alemão Theo Lutz. Chamada Stochastische Texte, pegava as cem primeiras palavras de O Castelo, de Kafka, e criava novos textos a partir delas, usando um programa de computador que produzia frases na estrutura do idioma alemão. “Estava ali a origem dessa produção que tem forte relação com a arte, com o design e com a tecnologia, e que é um desdobramento das poesias de vanguarda, visual, concreta, experimental”, diz Antonio.

A poesia que se encontra na internet hoje divide-se em pelo menos dois grandes grupos, embora eles não raro se confundam. “De um lado estão os herdeiros do concretismo, que ampliaram propostas idealizadas pelos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e por Décio Pignatari”, diz Antônio Vicente Pietroforte, professor de letras, semiótica e linguística da USP (Augusto de Campos, por sinal, teve o primeiro contato com um Macintosh em 1984). “Outra vertente, que usa a rede mais como ambiente de difusão, tende a uma abordagem mais coloquial, influenciada pela música pop, pelos beats, pelos poetas marginais e pela literatura periférica.”

É nesse segundo grupo que está a maior parte da atual produção de poesia online no País – que, mesmo sendo tão ampla, permite o reconhecimento de alguns poetas, em especial ligados aos eventos literários. Caso da curadora do Simpoesia, Virna Teixeira, que estreou em 2004 o blog Papel de Rascunho (papelderascunho.net). Embora já tivesse sido publicada, foi depois da investida virtual que ficou mais conhecida pelo empenho em difundir a poesia e a tradução – ela comanda hoje um selo artesanal, o Arqueria Editorial. No blog, que recebe média de 200 visitas por dia, publica poemas próprios, mas também trabalhos de outros autores, imagens, frases e áudios, “como se fossem recortes”. “Hoje é mais fácil ter um livro editado, mas as casas tradicionais ainda resistem a lançar poesia. Quem faz isso são as pequenas, que têm distribuição limitada. A internet revelou um número de leitores muito maior do que se podia supor.”

A paulistana Adriana Zapparoli estreou o blog zênite (zeniteblog.zip.net), em 2004, três anos antes de publicar o primeiro livro, A Flor-da-Abissínia (Lumme). “Coloco lá textos referenciais de intenções líricas. Muitas das minhas publicações em revistas literárias impressas ou online são sugestões vindas da leitura do conteúdo do blog”, diz. O uso da tecnologia como linguagem, afirma, não lhe interessa. “Já me aventurei em recursos do gênero, mas prefiro a sensação perene da impressão, a coisa do papel. Gosto da textura, das cores, quase que um quadro”, diz. Vantagem maior da internet, para ela, é conhecer de perto o trabalho de poetas de outros países, algo hoje muito mais fácil do que foi para gerações passadas – a paulistana Ana Rusche, por exemplo, que organiza em São Paulo o evento literário Flap! e edita o blog Contrabandistas de Peluche (www.anarusche.com), chegou a ter livro publicado no México por conta de contatos feitos online. Experiência similar, mas dentro mesmo do País, viveu o poeta e tradutor Cláudio Daniel, editor da revista Zunái (www.revistazunai.com), uma das principais referências de poesia na internet. “Tenho 48 anos, mas só fui conhecer poetas da minha geração, como Frederico Barbosa e Arnaldo Antunes, pela rede. Foi só então que nossa geração passou a conversar e organizar revistas.”

Recursos. Jorge Luiz Antonio lembra que mesmo a poesia focada no verbal sofre interferência dos meios tecnológicos. “Até a temática acaba influenciada pelas tecnologias, numa espécie de metalinguagem”, argumenta. Mas é entre os herdeiros dos concretistas que isso se destaca mais – em seu primeiro livro, Movimento Perpétuo, de 2002, o carioca Márcio André (www.marcioandre.com) chegou a usar códigos de HTML, com suas barras e tags, em meio aos versos, como conteúdo do texto.

André Vallias, editor da Errática (www.erratica.com), foi um dos pioneiros no Brasil no uso de computador em poesia – no início dos anos 90, quando os PCs ainda eram peça rara no Brasil, o jovem formado em direito teve contato, na Alemanha, com tecnologias que não existiam por aqui. “Nunca quis fazer poesia simplesmente escrita”, diz. Naquele momento, a divulgação era feita apenas por CD-ROM, limitação superada com a internet.

O interesse em explorar as possibilidades da web – em 1995, já produzia trabalhos em flash, com animação e áudio – o levou também a questionar o formato de revistas literárias online. “Muita gente fazia revista de poesia na internet, mas com o mesmo padrão da revista impressa. Ou seja, acumula uma série de trabalhos e faz por edição, a cada dois meses. Achava que essa limitação era inadequada”, conta. Fez da Errática uma espécie de blog com visual de site, tomando como base a revista Artéria – criada em 1975, com diferentes formatos a cada edição, chegou até a sair no formato de uma sacola, com os poemas de diferentes proporções dentro. “Aquela década foi muito fértil, com publicações impressas que superavam dificuldades. A Errática aplicou esse mesmo princípio na internet, sem obrigar cada trabalho a ter o mesmo padrão”, conta. Na última quarta-feira, entrou no ar a 101ª colaboração, um videopoema da carioca Gabriela Marcondes feito a partir de fragmentos de poesias de nomes como Cruz e Sousa, Florbela Espanca e Machado de Assis.

Performance. Assim como Vallias, o carioca Marcelo Sahea (www.sahea.net) dedica boa parte de seu trabalho à performance – uma espécie de caminho natural para o poeta que antecipa tendências e engloba gêneros. Autor de um e-book lançado em 2001, quando nem se falava no assunto, e que teve à época 15 mil downloads (no formato tradicional de PDF), hoje ele prefere apresentar sua poesia sonora ao vivo. Na avaliação de Vallias, essa tendência deriva das possibilidades virtuais – ler um poema ao mesmo tempo em que se ouve a voz do poeta, por exemplo. “A rede liberou a poesia da literatura. Há uma falsa impressão de que a poesia pertence à literatura, mas, na maior parte das culturas, a poesia oral é a fonte de perpetuação de mitos”, diz.

Uma entre os poucos estudiosos da poesia digital no Brasil, Heloisa Buarque de Holanda avalia que a crítica faz “pouco caso” das novas linguagens. “Como se vê mais quantidade que qualidade, imagina-se que não tem profundidade”, diz. Em 1998, o poeta e antropólogo Antônio Risério fez um estudo pioneiro desse trabalho, o Ensaio Sobre o Texto Poético em Tempo Digital. Doze anos depois, ele admite ter conhecido muito pouco “realmente digno de interesse”. “A maioria se senta diante do computador como se estivesse diante do papel e da velha máquina de escrever. Não se entrega ao novo meio. Os que fazem isso, como Arnaldo Antunes e André Vallias, vêm de antes da existência de blogs e revistas eletrônicas”, diz.

Intercâmbio e tradução para entender a poesia

Em sua terceira edição, o Simpoesia – que acontece de 5 a 7/11 na Casa das Rosas – terá como destaques a tradução, o intercâmbio entre poetas estrangeiros e de vários Estados do Brasil, a discussão sobre a poesia na universidade e a produção digital. O escritor Wilson Bueno, morto em maio deste ano, será homenageado com a presença da premiada poeta e tradutora canadense Erin Moure – o maior nome do evento -, responsável por verter para o inglês textos em portunhol (misto de português, espanhol e guarani) do paranaense. Outros convidados estrangeiros são Bruce Andrews, fundador e coeditor do jornal de vanguarda L=A=N=G=U=A=G=E, e o holandês Arjen Duinker – que, assim como Erin, tem ligação com a língua portuguesa. “Quisemos manter a proposta de encontro internacional, que já havíamos testado no ano passado, mas o foco varia de ano a ano, Neste, quis chamar mais mulheres. Haverá, por exemplo, um recital com cinco tradutoras, o que também aproxima a universidade”, diz Virna Teixeira, curadora do Simpoesia. De outros Estados, participarão nomes como o paraense Nilson Oliveira, da revista Polichinello, e a editora, jornalista e poeta Marize Castro, do Rio Grande do Norte.

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