"Por um lado, o filósofo, herdeiro e primeiro expoente
da teoria crítica, propõe interpretar todo o progresso humano à luz da
"constelação de fé e saber" e, por outro, convoca a filosofia à sua
tarefa principal: responder às grandes questões sobre a origem e o destino da
humanidade, aquelas sintetizadas por Kant mais de dois séculos atrás: o que
posso saber? O que devo fazer? O que posso esperar? O que é o homem?".
O artigo é do filósofo, jornalista e escritor italiano
Giancarlo Bosetti, diretor da revista de cultura política Reset, cofundada com
Norberto Bobbio, dentre outros, publicado no jornal La Repubblica, 11-01-2020.
A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Jürgen Habermas, após dez anos de trabalho, aqueles entre
seus oitenta e noventa anos, enviou recentemente para publicação uma
surpreendente obra por seu tamanho (dois volumes, mais de 1700 páginas) e por
seu conteúdo. Um duplo desafio aparece rapidamente claro nas páginas de Auch
eine Geshichte der Philosophie: desafio à interpretação atual da modernidade
como secularização e desafio à "desintegração" acadêmica da filosofia
em muitas diferentes técnicas. Por um lado, o filósofo, herdeiro e primeiro
expoente da teoria crítica, propõe interpretar todo o progresso humano à luz da
"constelação de fé e saber" e, por outro, convoca a filosofia à sua
tarefa principal: responder às grandes questões sobre a origem e o destino da
humanidade, aquelas sintetizadas por Kant mais de dois séculos atrás: o que
posso saber? O que devo fazer? O que posso esperar? O que é o homem?
Habermas quer incentivar os filósofos a retomarem um
caminho, nunca terminado, mesmo na época atual, que é pós-metafísica. O que
significa que não podemos mais nos refugiar no mito ou na garantia de um Ser
que seja uma só coisa com o bem, o belo e o justo e que dite regras. Mas não
devemos renunciar a um "pensamento geral". Até agora, o
"processo de aprendizagem", no qual se baseia a visão habermasiana,
na segunda metade do século XX, deu uma discreta prova de sua capacidade de
"integração". Para o filósofo da "ética do discurso", a
partir dos recursos morais presentes na comunicação humana (linguagem), é
possível realizar um progresso que regula, com o direito, o tráfico das
atividades humanas. Esse progresso revelou um futuro de possível normatividade
universal, kantianamente acima das diferenças tribais e nacionais. Mas agora
arriscamos um "descarrilamento" daquele caminho: parecem estar
secando os recursos disponíveis para a modernidade reproduzir a si mesma,
parece estar se esgotando o combustível que alimenta as instituições da
liberdade. Preocupa a crise daqueles mecanismos que haviam funcionado,
especialmente na Europa, ao segregar o direito a partir dos recursos morais da
vida pública e da política.
Para Habermas, parecem estar secando os recursos disponíveis
para a modernidade reproduzir a si mesma, parece estar se esgotando o
combustível que alimenta as instituições da liberdade – Giancarlo Bosetti
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O problema ao qual Habermas dedica essas 1700 páginas é
precisamente o das "fontes" da normatividade, das energias que se
mantêm unidas e podem fazer crescer a solidariedade entre os seres humanos. Por
isso quis traçar a história desses recursos, procurando seus vestígios desde o
início do homo sapiens, nos três milênios da "constelação"
religião-conhecimento-vida das comunidades. Onde estão as chaves que explicam
como, a partir dos ritos hominídeos, chegamos à Constituição americana de 1787,
à Carta dos Direitos Humanos de 1948 ou à União Europeia? E, se as
encontrássemos, não serão essas mesmas as chaves que podem nos colocar de volta
no caminho?
O problema ao qual Habermas dedica as 1700 páginas do seu
novo livro é precisamente o das "fontes" da normatividade, das
energias que se mantêm unidas e podem fazer crescer a solidariedade entre os
seres humanos – Giancarlo Bosetti
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Conforme anunciado pela reflexão "pós-secular",
desde o diálogo de 2004 com o cardeal Ratzinger e, mais recentemente, com
Verbalizzare il sacro Habermas, coloca aqui no centro de seu pensamento a
religião, a dimensão sagrada e ritual que antecede a formação da linguagem e da
racionalidade que a linguagem incorpora. A história dos recursos que produzem
normatividade e, portanto, moral, e depois direito, começa a partir daí.
Para isso, encontramos no livro uma atenção renovada e
vistosa à "época axial" - o conceito é de Karl Jaspers - que é o
período entre o nono e o terceiro séculos a.C., que vê um extraordinário
florescimento de fé e de pensamento, com Confúcio e Lao Tsé na China, com os
Upanishads e Buda na Índia, com os profetas bíblicos na Palestina, com Homero e
a filosofia grega. Em tempos relativamente próximos, e sem contato entre si, se
produzem fenômenos que oferecem ensinamentos morais e princípios de saber que
permitem que indivíduos e comunidades enfrentem as ameaças naturais e sociais,
ensinando a gerenciar as dissonâncias cognitivas e os reveses de todos os
tipos, ajudando a integração a fazer o seu caminho. As energias de
solidariedade que mantêm as ordens sociais unidas se geram e regeneram
historicamente nas práticas de culto das comunidades, a secularização transfere
e traduz depois as obrigações de natureza religiosa em estruturas de
consciência abstratas.
Habermas quer traçar a história dos recursos da
normatividade, procurando seus vestígios desde o início do homo sapiens, nos
três milênios da "constelação" religião-conhecimento-vida das
comunidades – Giancarlo Bosetti
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Habermas confessou, apresentando seu livro à imprensa alemã
e também no seminário realizado em Cortona com estudiosos italianos, que se
inspirou na "famosa formulação de Adorno de que todo o conteúdo teológico
deve ‘imigrar no profano’". E assim fizeram historicamente, mas o que não
está claro - acrescentou ele - é se e como essa tradução, do teológico para o
laico, "possa prosseguir até hoje" diante de problemas éticos de tipo
completamente novo, como aqueles postos pelo fim do crescimento natural do
organismo humano e da possibilidade de intervenções descontroladas sobre a sua
estrutura genética.
A hipótese de continuar a buscar recursos nos depósitos de
significado, nas "reservas semânticas" da religião, parece para
Habermas plausível – Giancarlo Bosetti
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A hipótese de continuar a buscar recursos nos depósitos de
significado, nas "reservas semânticas" da religião, parece para
Habermas plausível. Há uma encruzilhada na história da filosofia que esse livro
propõe como central, a que separa o caminho de David Hume daquele de Emanuel
Kant: ambos concordam em separar a fé da ciência, mas o primeiro elimina
qualquer legado e vestígio da fé judaica e cristã da filosofia, enquanto o
segundo tenta incluir na filosofia contemporânea a substância conceitual que a
religião cristã havia assumido através da simbiose com a filosofia grega, o
neoplatonismo, Orígenes e Agostinho. Hume desconstrói os conceitos de
identidade pessoal e de obrigação moral, enquanto Kant pretende reconstruir o
núcleo moral da ética cristã e da lei natural "dentro dos limites da pura
razão". Uma encruzilhada que tem um seguimento no empirismo, Newton, nas
ciências naturais, de um lado, e no idealismo transcendental e em Hegel, pelo
outro, especialmente aquele Hegel da filosofia do direito que coloca no centro
da modernidade a questão de integração social de indivíduos, em sua unicidade,
com normas abstratas e gerais. Um tema que permanece caro à teoria social
crítica, que Habermas leva a explorar os vínculos entre o indivíduo e a
comunidade, sobre a formação do "nós" na concretude histórica das
formas particulares de vida que cada comunidade assume, com as suas
normas-guias.
Habermas deixa em aberto um questionamento: se os processos
de aprendizado moral, que se encarnam na constitucionalização das liberdades
legais, estão ficando emperrados, caberá ainda à constelação de fé-saber os
alimentar? – Giancarlo Bosetti
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Essa imponente obra oferece a confirmação do percurso do
grande filósofo alemão, mas também várias surpresas e permanecerá no centro da
discussão filosófica contemporânea por um longo tempo. Deixa em aberto um
questionamento dramático: se os processos de aprendizado moral, que se encarnam
na constitucionalização das liberdades legais, estão ficando emperrados, caberá
ainda à constelação de fé-saber os alimentar? E, se também os recursos
religiosos escasseiam, haverá movimentos seculares e práticas sociais capazes
recolocar em movimento a máquina?
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