Sou só descontentamento e desassossego, com esta baleia
franca agonizante e entalada dentro de mim:
Lélia Almeida.[1]
Si miramos la realidad, las mujeres son más sólidas, más
objetivas, más sensatas. Para nosotros, son opacas: las miramos, pero no
logramos ir adentro. Estamos tan empapados de una visión masculina que no
entendemos. En contrapartida, para las mujeres, nosotros somos transparentes.
Lo que me preocupa es que cuando la mujer llega al poder pierde todo aquello.
Hay tres sexos: femenino, masculino y el poder. El poder cambia a las personas.
José Saramago.[2]
Ai! Esta baleia franca agonizando na praia
de Itaperubá, em Laguna (SC), agonizando frente à nossa impotência, resistindo
e sobrevivendo a um coquetel de medicamentos para a eutanásia. Ai! Esta baleia
franca entalada dentro de mim, virada numa metáfora de coisas grandes e
sagradas, maravilhosas e que parecem que não tem mais lugar e nem cabida neste
mundo. Resta-nos observá-la, mirar-nos, bravamente, na sua capacidade de
resistência mesmo sabendo que estamos assistindo a sua morte. Passo horas
pensando na baleia, tentando adivinhar-lhe as dores, os movimentos impossíveis,
a respiração difícil. A baleia levo-a entalada por aonde vou, nestes dias,
presa dentro de mim, e um sentimento aterrador se instala sem remédio.
Sinto-me
como o protagonista do filme do Bela Tarr, As Harmonias de Werckmeiser, quando
a vida de uma pequena cidade do interior da Hungria é transformada com a
chegada de uma baleia gigante empalhada. E da sua incompreensão, ao ver a
baleia, quando se pergunta sobre como Deus pôde conceber uma criatura daquelas
e ainda por cima fazê-la viver no mar!
A baleia é
mítica, é sagrada, é um símbolo também, e na sua grandeza é a metáfora que
escolho para expressar, neste momento, o meu desassossego e o meu profundo
descontentamento. Lembro das muitas vezes ao longo da minha vida que tive de
mergulhar muda e só no descontentamento, na paralisia da baleia encalhada, como
uma criança que ouve da mãe, engole e choro e não reclama, para aquelas
situações quando as nossas sábias e pragmáticas mães sabem como ninguém que não
nos resta mais nada além de obedecer e aceitar. E calar. E sempre que não pude
expressar o meu descontentamento, a minha discordância, o desassossego
comprometeu os meus movimentos mais espontâneos e a minha fala mais verdadeira
e por isso a minha alma adoeceu. A minha alma que era um mar, um mar que já não
podia conter uma baleia. A baleia que mal respira e que não desiste sob os
nossos olhos atônitos.
Tenho
convivido com um profundo sentimento de frustração e de estar vivendo uma
oportunidade única que está sendo desperdiçada. A minha geração de mulheres
sonhou e lutou por muitas coisas lá na origem dos movimentos de mulheres deste
país. Digo nas origens porque me filio a uma linhagem de outras mulheres, anteriores,
que pensaram e me ensinaram tudo o que me faz, ainda hoje, me perceber como
cidadã, mãe, profissional e mulher no mundo. Ensinaram-me, antes de tudo, que o
movimento de mulheres sempre reivindicou a autonomia das mulheres, de forma
mais importante ainda do que a igualdade com os homens. Permanece soberana, em
algumas de nós, a raiz de toda esta luta que tem sido, historicamente, uma luta
por autonomia. E eis que temos, neste momento, a possibilidade de duas
candidatas mulheres à Presidência da República. E nunca o debate foi tão vazio,
de tão baixo nível e as mulheres nunca ficaram tão caladas. A baleia agoniza,
mas resiste, sinto sua respiração, sua alma que não se entrega. Ai baleia
calada!
Quando a
então Ministra Dilma Roussef anunciou publicamente que tinha câncer fiquei
estarrecida da maneira como os seus colegas de Esplanada e de partido
expressaram publicamente o tanto que este fato podia ajudá-la a crescer nas
pesquisas como candidata à Presidência da República. Os comentários foram
absurdos e não ouvi nenhuma grita de indignação sobre este tratamento
dispensado à Ministra, já naquele momento precisávamos ser pragmáticos, outra
vez pragmáticos e batendo o martelo, ali já começava a se gestar o que temos
como a estratégia urgente de todos estes meses, a pressa desenfreada, o vale
tudo porque ela tem de vencer, doa a quem doa, danem-se as baleias, dane-se o
meu desassossego. Falava-se da maneira como a doença podia render-lhe uma
imagem de lutadora, de sobrevivente e a então Ministra tinha deixado de ser uma
mulher e tinha se transformado numa candidata, ia capitalizar com a doença e
com outros episódios também. Não vi ninguém questionar estas declarações
desastrosas, perversas, mas parece que nada disso é importante e que minhas considerações
sabem a um sentimentalismo inoportuno e incorrigível, devo dizer, a esta altura
do campeonato.
Lembro de
um livro clássico que muitas mulheres da minha geração leram com atenção, Os
seis meses em que fui homem, um texto canônico da Rose Marie Muraro[3] onde ela
conta do estresse absoluto vivido quando teve de exercer um cargo de alta
responsabilidade, e repetir assim os gestos irrefletidos, como chamo os gestos
das mulheres que assumem o poder, porque só conhecemos este jeito de exercer o
poder, o jeito masculino de fazê-lo, e ai de nós se não for assim, já que é
este jeito que nos mantém ou destitui da coisa toda. A coreografia dos gestos
irrefletidos, frutos da consciência embargada, valeu-lhe um câncer de útero.
Foi uma das poucas narrativas sinceras que vi sobre o assunto.
Outro
clássico que vale a pena lembrar é O cálice e a espada da americana Riane
Eisler[4], onde ela estuda, ao longo da história do mundo, as relações entre os
homens e as mulheres. Atenta para o fato de que não haveria nenhuma evidência
consistente, depois de tantas tentativas de prová-la, da existência de um
matriarcado na história do mundo. Um matriarcado, que em exata oposição ao
patriarcado seria uma sociedade onde as mulheres dominariam os homens. Para a
autora isso não aconteceu e esclarece que sim, o que criou uma cultura da deusa
ao longo da história do mundo e que é a que sobrevive na nossa memória, seriam
momentos em que as mulheres, em comunidades matricêntricas, tinham um lugar de
destaque e eram valorizadas num patamar de igualdade aos homens que
simplesmente exerciam funções diferentes das delas. Aponta Creta como um
momento de excelência desta evidência e propõe que estes momentos da história
do mundo se constituíram em momentos de grande florescimento cultural,
espiritual e de pacificação.
A teoria
de Eisler, que é muito mais inteligente e abrangente do que eu possa contar
numa crônica, propõe que para que entendamos as complexas relações de dominação
entre os homens e as mulheres, é necessário um olhar diferenciado sobre estas
relações através do que ela chama de uma teoria da transformação cultural, a
partir de uma perspectiva holística e que reflete sobre os dois modelos básicos
de sociedade que subjaz à grande diversidade superficial da cultura humana. Um
seria o modelo dominador, popularmente chamado de matriarcado ou patriarcado,
onde uma metade da humanidade exerce a supremacia sobre a outra, e o outro
modelo chamado de parceria, baseado num princípio de união e onde a diversidade
não é equiparada à inferioridade ou à superioridade.
O trabalho
de Eisler que começa com estas considerações, no início dos anos 80, teve
desdobramentos importantes e o livro que trata sobre o Poder da parceria[5] fez
da autora uma importante ativista pela paz. Ela, recentemente, em entrevista ao
GNT, disse que o Brasil, através do Bolsa Família, se constitui num exemplo a
ser seguido pelo mundo, como uma prática de economia solidária e de pareceria.
Ela, portanto, propõem sim, uma alternativa ao que temos no poder, um poder de
parceria, onde o lugar das mulheres seja outro, diferenciado, e que sua maneira
de estar no poder seja inovadora, negando, entre outras coisas, uma cultura da
hierarquia burra, do mundo da guerra e da violência desmedida.
A baleia
mal respira dentro de mim, sinto-lhe as ganas de mover-se com força e
agilidade, dar uma rabanada com a cauda, mover-se, mas suas forças se esvaem.
As minhas mais sinceras esperanças vão-se junto com elas.
A sensação
é a de estar vivendo uma oportunidade única e, ao mesmo tempo, a de estar
presenciando um irreparável desperdício histórico. O que para mim, na metade da
jornada da vida, me abate sobremaneira, sabedora de que não temos muito mais
tempo assim para erros incorrigíveis. A oportunidade única deve-se ao fato de
que temos, neste momento, duas mulheres candidatas à Presidência da República
do País. O desperdício histórico é porque a sociedade brasileira decidiu não
pensar sobre este assunto, fazer de conta de que isto não está acontecendo e de
onde podemos concluir que se as respostas têm sido imbecis, infantis,
senso-comunsíssimas, é porque há uma ausência absoluta das perguntas
importantes. E, portanto, a impossibilidade de um debate que não pode ser feito
às pressas e nem sob censura.
Fala-se do figurino e do penteado das candidatas, fala-se de
sua orientação sexual, falam-se banalidades e superficialidades. A candidata
Dilma foi elevada a uma condição de Magna Mater, ao lado do Presidente Lula,
que por sua vez, foi elevado a um patamar de líder intergaláctico ou a uma
espécie de vice-Deus, coroados agora pelo nascimento de um menino chamado
Gabriel, que nasceu abençoado como um anjo, o que nos faz lembrar, uma fábula
outra, muito antiga, tão antiga como a existência das baleias, este bicho tão
inconveniente a me triturar as vísceras de angústia e agonia.
A
propaganda eleitoral do Partido dos Trabalhadores, ao criar esta tríade de
presépio, repetida à farta nos comícios, nos discursos e nos palanques, de
diferentes maneiras, nega, na prática, o próprio trabalho da Secretaria
Especial de Políticas das Mulheres do governo Lula, que as coloca, às mulheres
brasileiras, em seus projetos e programas, como protagonistas autônomas e
empoderadas sem fazer este uso reacionário e ideológico da figura da mamãezinha
terna, coadjuvante, subserviente e subalterna que tem de cuidar do mundo. E
trata, assim, o povo brasileiro como um bando de debilóides. Cala a boca
baleia, morre baleia!
Continuo
sem respostas para as minhas perguntas. As mulheres querem o poder? E chegando
lá como querem exercê-lo? Da mesma maneira que os homens? Há outro jeito das
mulheres estarem no poder? Como é esse jeito? E os homens, como vão lidar com
as questões propostas pelas mulheres? E se elas não concordarem? E se elas se
rebelarem? E se elas não obedecerem? Qual o significado do desinteresse de um
grande número de mulheres para que se lancem como candidatas? E qual o
significado do voto feminino para tal ou qual candidato? E da rejeição deste
mesmo voto para tal ou qual candidato? Baleia preguiçosa, burra, esqueceu de
pensar, vai pagar caro por isso, pela inconsciência, baleia burra, morre baleia
burra!
A poucas
semanas da eleição sinto uma imensa frustração, já entrei na pressa da coisa
toda, tomara que termine logo, tomara que termine de uma vez. Morre baleia,
morre. Vai morrer na praia, seu bicho burro!
Mais uma
vez o debate foi negligenciado. Mais uma vez o debate que envolve os desejos,
os direitos e as reivindicações específicas das mulheres foi negligenciado, o
mundo avança e a história das mulheres encalha como a baleia franca. Muito
provavelmente a candidata Dilma será a próxima presidente do país. Pagaremos um
preço alto pelas perguntas que deixamos de fazer, das vezes que deixamos de
questionar com senso crítico e autonomia de pensamento, das vezes que deixamos
de dizer não, de dizer que assim não nos serve, que não se pode tratar uma
mulher de determinadas maneiras, como um ser sem vontade e de todas as vezes
que compactuamos mudas com este tratamento e com a conivência e passividade de
determinadas condutas, das vezes que nos omitimos, das vezes que calamos frente
a impossibilidade de alguns tipos de alianças, das vezes que esquecemos que
mais cedo ou mais tarde vamos ter de responder às nossas filhas, às nossas
leitoras, às nossas alunas, pelas nossas próprias escolhas.
A baleia
agoniza, mas não morre, a desgraçada!
Do outro
lado do mundo, também numa praia, no final de junho, onze mulheres israelenses
levaram mulheres palestinas para passear em Telavive e Jaffa, sem pedir
autorização do governo do premiê Benjamin Netanyahu - em desafio à rigorosa lei
de entrada em Israel, conforme nos conta Viviane Vaz[6] em matéria publicada no
Correio Braziliense. "Nós comemos num restaurante, tomamos banho de mar e
nos divertimos na praia". A jornalista Ilana Hammerman conta que os
passeios entre palestinas e israelenses têm se repetido cada vez com um número
maior de mulheres e se transformado num ato espontâneo de desobediência civil e
pacífica já que elas não reconhecem a legitimidade da ocupação, dos muros e dos
postos de controle instalados por Israel no território palestino da
Cisjordânia.
A baleia
sente um frêmito, um frêmito como um raio, como uma faísca, um esboço de
resposta, quem sabe.
Enquanto
as nossas reivindicações não forem claras, enquanto não modularmos o discurso
de maneira inteligente e veemente, enquanto não dissermos a nós mesmas e ao
mundo qual é a maneira que queremos exercer o poder e se de fato queremos
fazê-lo, enquanto não articularmos a conduta, o gesto e a voz, só nos restará o
expediente da desobediência, prática feminina tão antiga esta, que nos projeta
para a margem do mundo, para fora da institucionalidade, transformadoras e
revolucionárias algumas vezes, inoperantes e esquecidas, quase sempre. Que é
como voltar sempre ao começo, ao começo do mundo, ao começo dos tempos. A
baleia estertora dentro de mim, uma ânsia, sinto cólicas de angústia nestes
últimos dias, o peso e a dor enorme de carregar esta baleia moribunda, as
minhas esperanças maltratadas, e essa tristeza sem fim, uma oportunidade
histórica desperdiçada, quanto retrocesso! Baleia burra. Vai morrer encalhada,
vai morrer na praia, baleia burra!
1- Lélia Almeida é escritora.
http://mujerdepalabras.blogspot.com/
2-
http://www.escribirte.com.ar/destacados/5/saramago/noticias/864/saramago:-me-preocupa-la-mujer-en-el-poder.htm
3- MURARO, Rose Marie. Os seis meses em que fui homem. Rio
de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993.
4- EISLER, Riane. O Cálice e a Espada: Nossa História Nosso
Futuro. Imago: Rio de Janeiro, 1989.
5- EISLER, Riane. O Poder da parceria. São Paulo: Palas
Athena, 2007.
6- http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia182/2010/09/07/mundo,i=211808/GRUPO+DE+MULHERES+EM+ISRAEL+DESAFIA+TABUS+PARA+SE+APROXIMAR+DE+PALESTINAS.shtml
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