"Como uma folha de lótus que não pode ser molhada,
aquele que se liberou de seus desejos não pode ser maculado pelo mal." A
capacidade de repelir água e emergir limpa de águas turvas levou os indianos a
eleger o lótus como um dos símbolos da pureza espiritual. A passagem acima,
extraída do poema Bhagavad Gita, descreve o fenômeno.
As gotas de água escorrem muito facilmente pelas folhas de
lótus. Sua superfície se apresenta sempre limpa e seca. Desde 1970, cientistas
se perguntavam o que seria responsável por esse fenômeno. Superfícies capazes
de repelir a água têm muitas aplicações tecnológicas, tanto na construção de
tubos quanto de lentes e equipamentos ópticos. Em muitos instrumentos, a adesão
de partículas e líquidos às superfícies é um problema constante.
Em 1990, examinando as folhas de lótus em um microscópio
eletrônico, os cientistas descobriram seu segredo. A superfície das folhas é
composta por micromontanhas e microcavidades. Quando uma gota de água cai sobre
a folha, a água não consegue remover o ar das microcavidades. Portanto, toca a
folha somente nos picos das micromontanhas.
Como a água interage com a folha em somente poucos pontos, a
gota mantém sua forma esférica, não se espalha e corre sobre a folha
livremente. Basta inclinar a folha levemente para que as gotas corram para a
borda e caiam no chão, deixando a folha seca e limpa.
Nos anos seguintes, o princípio da folhas de lótus foi
utilizado para construir materiais autolimpantes muito mais eficientes que o
Teflon que reveste nossas panelas. Mas esses materiais, apesar de usados em
muitas aplicações, têm seu uso limitado pela fragilidade. Basta um arranhão, um
pouco de pressão ou um pouco de detergente na água e a microtextura perde a sua
capacidade de repelir a água.
Agora, novamente inspirados pela folha de uma planta, um
grupo de cientistas desenvolveu protótipos de superfícies que repelem água e
óleos e ainda têm a capacidade de se regenerar.
Escorregador. A planta carnívora Nepenthes captura suas
vítimas usando uma espécie de escorregador de inseto. Quando um inseto pousa na
sua superfície, ela é tão lisa que o inseto escorrega e acaba caindo em uma
cavidade no centro da folha (a folha tem o formato de funil). Nessa
"boca", a planta acumula um líquido rico em enzimas capaz de matar e
digerir o pobre mosquito.
Estudando a superfície das folhas de Nepenthes, os
cientistas desvendaram o segredo desse escorregador hiperliso. A superfície da
folha não é totalmente lisa, mas apresenta ranhuras e nanocavidades. Essas
ranhuras e cavidades são preenchidas por um líquido não volátil (que não
evapora) produzido pela planta. Esse líquido repele tanto a água quanto as
gorduras. O resultado é que gotas de água e gordura não aderem à superfície.
Como as patas dos insetos são recobertas por uma finíssima camada de gordura,
eles derrapam e acabam virando o almoço da planta.
Inspirados por essa descoberta, físicos e químicos
produziram diversos materiais com propriedades semelhantes às das folhas de
Nepenthes. Superfícies feitas de nanofibras de Teflon foram recobertas com
líquidos não voláteis (Fluorinert ou Krytox) que não se misturam com água ou
com hidrocarbonetos. O resultado é uma superfície hiperlisa na qual gotas de óleo
ou água não aderem e escorrem rapidamente.
O mais interessante é que, pelo fato de as gotas interagirem
com uma camada muito fina de líquido, a superfície regenera facilmente. Se
riscamos a superfície, o microfilme líquido se redistribui, regenerando a
propriedade original. O mesmo ocorre quando se aplica pressão.
Essa descoberta abre a possibilidade de, no futuro, podermos
utilizar materiais quase impossíveis de sujar. Se eles aparecerão no vidro dos
celulares, nas lentes de câmeras fotográficas ou no fundo de nossas panelas,
ainda é cedo para prever.
É interessante observar como a ciência pode partir de um
poema indiano, passar por um escorregador de inseto e criar panelas impossíveis
de sujar.
BIÓLOGO , ,
MAIS INFORMAÇÕES: BIOINSPIRED SELF-REPAIRING SLIPPERY SURFACES WITH PRESSURE
STABLE OMNIPHOBICITY. NATURE, VOL. 477, PÁG. 443, 2011 - O Estado de
S.Paulo
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