sábado, 15 de julho de 2017

AS BARRICADAS DE ANNA ŚWIRSZCZYŃSKA


 Escrito por Piotr Kilanowski (tradução e nota). 


Anna Świrszczyńska (leia-se algo como Xfirchtchinska, ou Xifirchtchínska numa versão que seria mais fácil de se ler por aqui) foi uma poeta polonesa que nasceu em 1909 na cidade de Varsóvia. Também foi dramaturga e notada autora de versos para crianças. Publicou os primeiros poemas em 1930, sendo que seu livro de estreia foi publicado em 1936. A experiência da guerra, principalmente a participação no Levante de Varsóvia, em 1944, transformou sua linguagem poética. Embora tivesse recebido prêmios em concursos literários clandestinos durante a II Guerra, seu novo estilo foi caraterizado pelo rompimento com o anterior.

Sua nova forma poética era privada das ricas metáforas, das estilizações para o polonês antigo e dos elementos grotescos que marcaram seus poemas escritos antes e durante a II Guerra. Ela mesma, na introdução ao volume de Poezje wybrane (Poemas seletos) de 1973, considerava que cada poema precisava de uma forma singular para expressar seus conteúdos e que o papel do artista era continuamente criar seu próprio estilo e simultaneamente destruí-lo, para criar um estilo novo e próprio. E, de acordo com essa afirmação, podemos rastrear a história dos estilos criados e destruídos na obra de Świrszczyńska: os poemas de antes da guerra, marcados com a educação artística que recebeu em casa – seu pai foi pintor, escultor e pesquisador de folclore, –, cintilam com variadas cores do idioma, estilizações na linguagem renascentista ou barroca e uma mistura de humor e seriedade.

Mas suas duas faces poéticas mais conhecidas têm a ver com a poesia feminista e com o relato poético da experiência do Levante de Varsóvia. Por mais que sejam expressas de maneiras diferentes, são inseparavelmente relacionadas entre si. A visão da guerra e da destruição da cidade, contida no volume Eu construía a barricada (Budowałam barykadę), são um raro exemplo de poesia testemunhal feminina polonesa. Seus poemas feministas são muito marcados pela experiência do corpo e da corporalidade, cuja percepção, indubitavelmente, foi influenciada pelo trabalho de enfermeira na guerra urbana.

Embora o livro Jakiegoż to gościa mieliśmy (Mas que hóspede que nós tivemos), escrito pelo famoso poeta Czesław Miłosz (1911-2004), tentasse colocar seu nome e poesia no alto panteão poético polonês, a recepção de Świrszczyńska, por causa de sua coragem e revoluções estilísticas, até hoje enfrenta dificuldades.

Seus poemas feministas, como os dos volumes Jestem baba (Sou mulher) ou Szczęśliwa jak psi ogon (Feliz como o rabo do cachorro), que de modo inédito, inventivo e despudorado apresentam tanto a sexualidade quanto a corporalidade feminina em suas glórias e sofrimentos, até hoje são vistos com certa reserva. A apresentação do mundo da mulher, por meio de compartilhar e comunicar suas experiências tão diferentes do sempre representado mundo masculino, e sua concepção da mulher, minam a visão estereotipada. A linguagem excessivamente simplificada e, por isso, inovadora na sua capacidade de comunicar, o choque que causou ao falar de modo direto sobre suas experiências da corporalidade, sobre a guerra e sobre ser mulher ainda causam perturbação, mesmo depois de transcorridas mais de três décadas desde a sua morte, em 1984.

O volume Eu construía a barricada, cujo tema é o Levante de Varsóvia, publicado pela primeira vez em 1974, trinta anos após a revolta, além de ser um relato poético testemunhal, é também a prova de um estilo que evita monumentalismo ao falar da guerra. É comparável talvez à Pamiętnik z Powstania Warszawskiego (As memórias do Levante de Varsóvia), escrito em prosa pelo poeta Miron Białoszewski (1922-1983) e publicado em 1970. Tanto essa obra quanto a de Świrszczyńska fogem do páthos com o qual se costumava apresentar a guerra até então. Predomina nelas a visão do ser humano comum. Mesmo quando aparecem heróis, estes são diferentes dos protagonistas sobre-humanos das epopeias antigas e modernas. Pelo contrário, o que os faz heroicos é a sua humanidade. No país que cultiva lendas heroicas, muitas delas relacionadas com o martírio do Levante de Varsóvia, relatos deste tipo dificilmente ganham popularidade. No caso de Eu construía a barricada, a questão é mais problemática ainda, pois lidamos com a guerra sob a ótica de uma mulher. Observamos nesta saga vários papéis, predominantemente femininos: uma enfermeira no hospital, que morreria para poder poupar sofrimentos aos outros; uma mulher que enfrenta o pelotão de fuzilamento; um casal de irmãs aleijadas cuja motivação de se manterem vivas é cuidarem uma da outra; uma servente que carregava comadres no hospital do Levante; uma escoteira cujo último desejo envergonhado é ser enterrada não com sua farda, mas com um vestido de rendas que nunca teve oportunidade de usar na vida; e um ser humano, cuja vontade de sobreviver o faz roer um muro para se enterrar nele e viver como uma centopeia.

A poeta apresenta várias cenas, diálogos e monólogos que nos mostram a vida do cotidiano do Levante entre tiroteios, mortes, fuzilamentos e batalhas. Observamos como a guerra desfaz os relacionamentos familiares, sociais e humanos. Os sonhos, as esperanças, as decepções e a cruel realidade da cidade agonizando sob o bombardeio são apresentados diretamente, por meio de recortes, que ajudam a formar um panorama. Nos tempos da agonia de Aleppo, da guerra que devassa as cidades do Leste da Ucrânia, da ainda fresca memória de Sarajevo, a Editora Dybbuk nos brinda com este relato poético sobre a guerra urbana de 70 anos atrás, tão antigo e tão atual ao mesmo tempo, consciente de que é preciso trazer os dybbuks, os espectros do passado, de volta, na esperança de poder exorcizá-los no presente. A edição bilíngue conterá fotos do Levante e deverá ser publicada no septuagésimo terceiro aniversário do início do Levante de Varsóvia, no mês que vem.



O oficial alemão toca Chopin

O oficial alemão
caminha pela cidade morta,
tropel das botas
e eco.

Entra na casa morta,
não há porta,
passa na soleira pelos corpos
das pessoas mortas.

Chega ao piano,
bate
na tecla.

O som flui pelas janelas sem vidros
pela cidade morta.
O oficial senta.
Toca Chopin.



O soldado alemão

Hoje de noite choravas no sono,
sonhavas com teus filhos
na cidade distante.

Levantaste de manhã, farda, capacete,
metralhadora no ombro.

Foste jogar vivas no fogo
as crianças alheias.



Esperando o fuzilamento

Meu medo fica mais poderoso
a cada segundo
sou poderosa
como um segundo de medo
sou um universo de medo
sou
o universo.

Agora quando
estou no paredão
e não sei se fecho os olhos
ou se não fecho.

Agora quando
estou de pé no paredão esperando
o fuzilamento.



O sonho da escoteira

Quando já me tiverem fuzilado,
nem tudo ainda vai terminar.

Vai se aproxima
o soldado que me fuzilou,
e dirá: tão jovem,
que nem a minha filha.

E abaixará a cabeça.



O homem e a centopeia

Eu vou sobreviver.

Vou encontrar o porão mais profundo,
me trancar e não deixar ninguém entrar,
vou cavar uma toca no chão,
mastigar os tijolos com os dentes,
vou me esconder no muro, entrar no muro,
como uma centopeia.

Todos vão morrer, mas eu
vou sobreviver.



Carregava comadres

Fui servente num hospital
sem remédios e sem água.
Carregava comadres
com pus, sangue e fezes.

Amava pus, sangue e fezes,
eram vivos como a vida.
A vida ao redor
estava cada vez mais escassa.

Enquanto perecia o mundo
eu era apenas um par de mãos que entregavam
a um ferido uma comadre.

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