Publicado no Unisinos.
Israel se retirou da Faixa de Gaza na terça-feira (5), mas
deixou para trás morte e destruição. A socióloga israelense Eva Illouz diz à
“Spiegel” que seu país está tomado pelo medo e está cada vez mais suspeitando
da democracia.
Houve amplo apoio em Israel à operação na Faixa de Gaza,
apesar dos números imensos de vítimas civis e a morte de centenas de crianças.
Por que isso?
Onde você vê seres humanos, os israelenses veem inimigos.
Diante dos inimigos, você cerra fileiras, se une no temor por sua vida, e você
não pensa na fragilidade do outro. Israel tem uma autoconsciência
esquizofrênica, dividida: ela cultiva sua força e não consegue deixar de se ver
como fraca e ameaçada. Além disso, tanto o fato de o Hamas nutrir uma ideologia
radical islâmica e antissemita quanto a existência de um racismo raivoso
antiárabe em Israel explicam por que os israelenses veem Gaza como um baluarte
de terroristas reais ou potenciais. É difícil ter compaixão por uma população
vista como ameaçando o coração de sua sociedade.
Isso também se deve ao fato de a sociedade israelense estar
se tornando cada vez mais militarista?
Israel é ao mesmo tempo um poder militar colonial, uma
sociedade militarizada e uma democracia. O Exército, por exemplo, controla os
palestinos por uma vasta rede de ferramentas coloniais, como postos de
controle, tribunais militares (governados por um sistema legal diferente do
sistema israelense), concessão arbitrária de licenças de trabalho, demolição de
casas e sanções econômicas. É uma sociedade civil militarizada porque quase
toda família tem um pai, filho ou irmão no Exército e porque os militares
exercem um papel enorme na formação da mentalidade dos israelenses comuns e são
cruciais tanto nas decisões políticas quanto na esfera pública. Na verdade, eu
diria que “segurança” é o conceito primordial que guia a sociedade e a política
israelense. Mas também é uma democracia, que concede direitos aos gays e
possibilita ao cidadão processar o Estado.
Mesmo assim, muitos diriam que Israel foi longe demais nesta
guerra contra o Hamas.
Eu acho que os israelenses perderam o que podemos chamar de
“sensibilidade humanitária”, a capacidade de se identificar com o sofrimento de
um outro distante. Em Israel, ocorreu uma mudança na percepção do “outro
palestino”. O palestino se transformou em um verdadeiro inimigo na percepção
dos israelenses, no sentido de que “eles estão ali” e “nós estamos aqui”. Eles
deixaram de ter um rosto e mesmo um nome.
Você tem uma explicação para a mudança?
Israelenses e palestinos antes se misturavam. Eles
trabalhavam como operários de construção e como mão de obra barata, mal paga. O
muro foi construído. Vieram os bloqueios de estrada, que impediram a liberdade
de movimento dos palestinos. A redução imensa nas licenças de trabalho veio em
seguida. E em poucos anos os palestinos desapareceram da sociedade israelense.
A Segunda Intifada colocou um prego nesse caixão, por assim dizer. A natureza
da liderança israelense também mudou. A direita messiânica ganhou progressivamente
poder em Israel. Ela costumava ser marginal e ilegítima; agora é cada vez mais
popular. Essa direita radical ocupa cadeiras no Parlamento, controla orçamentos
e mudou a natureza do discurso. Muitos israelenses não entendem a natureza
radical da direita em Israel. Ela se disfarça com sucesso como sendo
“patriótica” ou “judaica”.
Por que a direita é tão forte no momento, apesar de haver
bem menos ataques terroristas em Israel do que no passado?
Gerações inteiras foram criadas com os territórios, com
Israel sendo um poder colonial. Elas não conhecem outra coisa. Você tem os
assentamentos que são altamente ideológicos. Eles expandiram e entraram na vida
política israelense. Os assentamentos foram fortalecidos por meio de políticas
de governo sistemáticas: eles recebem incentivos fiscais; eles contam com
soldados para protegê-los; eles contam com estradas e infraestrutura muito
melhores do que no restante do país. Há segmentos inteiros da população que
nunca conheceram uma pessoa secular e foram educados religiosamente.
Alguns desses segmentos religiosos também são muito
nacionalistas. A realidade que enfrentamos dentro de Israel é que devemos
escolher entre liberalismo e o judaísmo, e se escolhermos o judaísmo, estamos
condenados a nos tornarmos uma Esparta religiosa, o que não será sustentável.
Enquanto nos anos 60 era possível ser tanto socialista quanto sionista, hoje
não é possível, por causa das políticas e da identidade de Israel. E há o papel
que os judeus que vivem fora de Israel exercem em Israel. Muitos desses judeus
têm pontos de vista de direita e contribuem com dinheiro para jornais, centros
de estudos e instituições religiosas dentro de Israel. Vamos encarar: a direita
tem sido mais sistemática e mais mobilizada, tanto dentro quanto fora de
Israel.
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Os judeus na diáspora veem Israel de modo diferente dos
judeus em Israel?
Os judeus da diáspora foram moldados pela memória do
Holocausto. Eles costumam viver em sociedades nas quais seus próprios direitos
democráticos são garantidos. Às vezes estão sob ataque do antissemitismo e,
portanto, sentem um ímpeto de reforçar a identidade judaica. Eles não entendem
a aflição dos israelenses que veem a democracia sendo progressivamente devorada
por forças sombrias. Hoje, os judeus da diáspora e os judeus em Israel não têm
mais os mesmos interesses.
O que acontecerá se os princípios democráticos continuarem
ruindo?
Há um ou dois anos, o jornal “Haaretz” realizou uma pesquisa
que apontou que 40% das pessoas disseram estar considerando deixar Israel. Eu
não sei os números reais, mas nunca soube de tamanha alienação em relação a
Israel como durante esse período. As pessoas que vivem na secular Tel Aviv têm
muito menos em comum com seus pares religiosos em Jerusalém do que com as
pessoas que vivem em Berlim.
israel tacismo
Você descreve um país temeroso e ansioso.
O medo está profundamente entranhado na sociedade israelense.
O medo do Holocausto, o medo do antissemitismo, o medo do Islã, o medo dos
europeus, o medo do terror, o medo do extermínio. E o medo gera um tipo muito
particular de pensamento, que eu chamaria de “catastrofista”. Sempre se pensa
no pior cenário, não no curso normal dos eventos. Nos cenários catastrofistas,
é permitido violar muito mais normas morais do que se você imaginasse um curso
normal dos eventos.
Essa percepção diferente das ameaças e conflitos é
problemática. Enquanto Israel se vê como vítima, o resto do mundo cada vez mais
vê o país como um poder de ocupação violento.
Imagine que você seja uma menina criada por um pai muito
brutal. Você desenvolveria uma suspeita “saudável” dos homens e se tornaria
muito cautelosa. Se você vivesse por algum tempo em um ambiente de homens bons
e carinhosos, sua suspeita relaxaria. Mas se você vivesse em um ambiente no
qual alguns homens fossem muito brutais e alguns não, sua suspeita saudável se
transformaria em uma incapacidade obsessiva de diferenciar entre os tipos
diferentes de homens, os brutais e os carinhosos. Esse é o trauma histórico da
consciência com o qual os judeus convivem. A psique israelense se tornou
incapaz de fazer essas distinções.
Esse medo justifica o tipo de violência brutal imposta à
população civil na Faixa de Gaza?
Claro que não. Eu só estou dizendo que o medo é central na
psique israelense. Esses temores são cinicamente usados por líderes como o
primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. Ele faz os israelenses acreditarem que
todos eles querem nos destruir. O Hamas quer nos destruir, a ONU quer nos
destruir, a Al Qaeda e o Irã querem nos destruir. O EIIL (Estado Islâmico do
Iraque e do Levante) quer nos destruir. Os europeus antissemitas querem nos
destruir. Esse é basicamente o filtro pelo qual o conflito com o Hamas é
interpretado pelo israelense comum. Outra dimensão desse prisma é que “eles”
não são seres humanos.
Os palestinos são desumanizados porque colocam seus soldados
entre os civis, enviam suas crianças à luta, gastam e desperdiçam seu dinheiro
na construção de túneis mortais em vez de construindo sua própria sociedade.
Além da desumanização do outro, os israelenses têm um forte senso de sua
própria superioridade moral. “Nós pedimos às pessoas para deixarem suas casas;
nós telefonamos para elas para assegurar que os civis sejam evacuados. Nós nos
comportamos de forma humana”, pensa o israelense. Um Exército com bons modos.
Mesmo assim, uma enorme onda de ódio se tornou visível em
Israel nas últimas semanas. E não é direcionada apenas aos palestinos, mas
também a segmentos da sociedade israelense.
Algumas normas básicas de discurso foram violadas por alguns
rabinos e membros do Knesset, que não têm escrúpulos em expressar ódio pelos
árabes de formas que legitimam o ódio. Isso é muito preocupante. Isso acontece
porque gerações inteiras foram criadas acreditando nas posições religiosas e
ultranacionalistas. Eu não acho que há mais ódio em Israel do que em alguns
bolsões racistas da sociedade alemã ou francesa. Mas quando alguns palestinos
cantaram recentemente nas ruas de Paris, “Morte aos Judeus”, a reação do
governo do primeiro-ministro Manuel Valls foi rápida e clara. As autoridades
enviaram uma forte mensagem de que há formas de discurso e de crença que são
inadmissíveis. O que falta na sociedade israelense é esse tipo de forte
posicionamento moral vindo de seus líderes.
Como você explica esse paradoxo –o ódio por um lado e a
ênfase de Israel em seus valores liberais do outro?
Israel começou como uma nação moderna. Ela extraía sua
legitimidade do fato de ter instituições democráticas. Mas também construiu
instituições altamente antimodernas em seu desejo de criar uma democracia
judaica, ao dar poder aos rabinos, ao criar profundas desigualdades étnicas
entre diferentes grupos étnicos, como os judeus de países árabes contra judeus
de descendência europeia; árabes contra judeus; judeus contra não judeus. Isso
bloqueou o pensamento universalista.
Você diria que o caráter judeu do país subordinou o caráter
democrático?
Sim, com certeza. Nós estamos em um ponto onde se tornou
claro que o judaísmo sequestrou a democracia e seu conteúdo. Isso acontece cada
vez mais quando o currículo escolar começa a ser mudado e passa a enfatizar
mais conteúdo judeu e menos conteúdo universal; quando o Ministério do Interior
expulsa trabalhadores estrangeiros porque membros do partido Shas temem que não
judeus possam se casar com judeus; quando direitos humanos são pensados como
sendo uma ideia esquerdista, porque os direitos humanos pressupõem que judeus e
não judeus são iguais.
Isso não soa particularmente encorajador.
A única resposta é a criação de um vasto campo de pessoas
que defendam a democracia. A divisão direita-esquerda não é mais importante. Há
algo mais urgente agora: a defesa da democracia. A voz da extrema direita está
muito mais alta e clara do que antes. Isso é que é novo: uma direita racista
que não tem vergonha de si mesma, que persegue os dissidentes e até mesmo as
pessoas que ousam expressar compaixão pelo outro lado. O verdadeiro perigo para
Israel e sua sustentabilidade vem de dentro. Os elementos fascistas e racistas
não são uma ameaça menor à segurança do que os inimigos externos.
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