"No Orfeu Extático e no Literatura como missão as
décadas de 1910 e 1920, como você diz, a grande metrópole une uma origem
avassaladora, mas também uma matriz de uma nova vitalidade emancipadora. Como
você mostra a partir dos escritos de Lima Barreto, do Euclides da Cunha, do
Blaise Cendrars. Entretanto, ao que parece, na década de 30, no mundo inteiro
houve uma volta conservadora, e que essas manifestações foram solapadas ou
foram deixadas de lado. Você acha que a ascensão do nazi-fascismo, na década de
1930, no entre guerras e a Segunda Guerra Mundial, toda essa matriz criativa
que existia na década de 1920, mesmo os movimentos do anarco-sindicalismo,
etc., elas foram solapadas e que uma nova ordem surgiu?
Nicolau: Você está pondo em xeque a década de 30 como se
fosse um movimento de reação, de recuo no processo de exploração das
possibilidades de uma cultura democrática, aberta, eu concordo com você quanto
aos anos 30, mas eu puxaria para os anos 20, porque se nos anos 30 fica mais do
que patente pela cristalização do nazi-fascismo, é preciso lembrar que a
gestação do nazi-fascismo é dos anos 20. Então, o que acontece não é algo
limitado aos anos 20, 30, eu diria que é um fenômeno dos pós-guerra. E se a
gente considerar que o pós-guerra não é apenas o pós-guerra, mas é também o
pós-revolução russa, veremos que a revolução russa é parte da grande crise da
primeira guerra. Se você coloca tudo isso junto, o que você tem nos pós-guerra,
já é a polarização de um mundo que põe em confronto forças totalitárias pró-soviéticas
e nazi-fascistas, e isso provoca um processo de militarização e de intolerância
que se difunde em escala mundial. A consequência geral é a difusão de um
pensamento conservador nacionalista, a militarização das sociedades, a
intolerância e a exclusão em massa de grupos, culturas e valores
estigmatizados. É esse o elemento novo na cena brasileira. Todos nós fomos
educados para achar que o elemento novo na sociedade brasileira fosse o
modernismo, não, esse é que é o elemento novo na sociedade brasileira, e é com
esse elemento novo que o modernismo está em sintonia e esse elemento que vai se
cristalizar com o Varguismo e a tendência autoritária no Brasil, ao alinhamento
do Brasil com esses modelos autoritários de nível internacional. Portanto, é um
fenômeno transnacional cada vez mais, é um fenômeno do capitalismo do
pós-guerra e embora tenha havido uma efervescência de movimentos culturais que
vinham do pré-guerra, particularmente as culturas derivadas do anarquismo, como
o cubismo, o dadaísmo, o surrealismo, a essa altura já eram minoritárias a
partir da cultura dominante do orfismo, do construtivismo e da arte
politicamente alinhada. Nesse sentido, a cultura dominante no fim do pós-guerra
até a Segunda Guerra Mundial é uma cultura fortemente conservadora,
reacionária, opressiva, intolerante, excludente e articulada numa linguagem
racista. Em qualquer parte do mundo que você for, incluindo os Estados Unidos.
Então, embora eu tenha concentrado meus estudos nos anos 20, queria projetar
essa percepção de que se trata de todo um momento histórico de longa duração,
que inclusive ultrapassa a situação de guerra. É só pensar no pós-segunda
guerra e no macarthismo e na Guerra Fria e você vê essa estrutura sobrevivendo
com diferentes feições, com diferentes linguagens, com diferentes imagens e
representações, mas basicamente esse mesmo quadro de valores polarizados e de
intolerância por toda parte. No fundo é a sociedade em que eu me reconheço, eu
nasci no meio disso, para meu desgosto. E eu sendo parte de uma minoria, por si
só alguém que já estava numa posição frágil, vulnerável. Enquadrado nesse
conjunto me senti particularmente massacrado. Eu fiz a escola sobre a ditadura
militar, a escola era uma espécie de instituição correcional que impunha
valores comportamentais, patrióticos e uma disposição a introjetar uma voz de
comando militar, a ser passivo, a aceitar ordens. Nesse sentido não tive uma
educação, eu tive uma anti-educação. Meu processo de educação foi uma luta para
me deseducar daquilo que me foi introjetado desde a infância. Acho que,
infelizmente, já estamos avançados no século XXI e de alguma forma, ainda,
queda de muro ou não queda de muro, a gente ainda vive um clima que é um
desdobramento dessa fonte profundamente nociva, anti-humanista, anti-social,
anti-democrática do primeiro pós-guerra que foi sendo reiterado por sucessivas
crises e tendo seus momentos de maior e menor compressão, mas basicamente essa
é a atmosfera em que o mundo submergiu por conta da polarização
ideológica."
Entrevista com professor Nicolau Sevcenko
www.pontourbe.net
Ponto Urbe - A Revista Digital do Núcleo de Pesquisa
Urbana(NAU) da USP
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