Guy Tapie, pesquisador da Universidade de Bordeaux
O sociólogo francês Guy Tapie, 59 anos, fala poucas palavras
em português. Tem se esforçado, já que está em sua terceira visita ao Brasil,
como pesquisador de um convênio entre a Universidade de Bordeaux, a
Universidade de Cincinatti (EUA) e a Universidade Federal do Paraná. Seu
pequeno vocabulário inclui as palavras “Barigui”, o parque; “Guarituba”, a
ocupação irregular; e o programa “Minha Casa, Minha Vida”.
Decorou-as por razões bem pessoais. Confessa-se fascinado
pela convivência entre “diferentes” no Barigui. Estimulado pelas soluções
urbanas que surgem em condições adversas, a exemplo da favela do Guarituba. E
decepcionado pela velocidade com que o governo ergue casas populares sem dar
muita “pelota” para o entorno.
Pudesse, estudaria todos esses assuntos. Quem sabe. Guy
acaba de concluir uma longa investigação sobre habitação contemporânea em seu
país, a França. A descrição dos resultados se assemelha, em parte, ao clima
claustrofóbico do filme Caché, de Michel Haneke, em que um casal se sente
ameaçado por vídeos domésticos. “As pessoas julgam que bem-estar é sinônimo de
espaço protegido”, comenta.
Com o estudo da casa em fase de lançamento, faz também a
divulgação da pesquisa realizada ao lado de americanos e brasileiros da UFPR.
Guarda segredos. Sabe-se que trata das relações entre mobilidade, energia e
“metropolização” – um conceito ainda pouco explorado, mas que diz respeito ao
modo de vida em regiões urbanas mais desenvolvidas.
Se Curitiba for o próximo tema do sociólogo, não vai lhe
faltar matéria-prima. Fez bons laboratórios por aqui. Guy Tapie não resiste a
observar o uso que os curitibanos fazem do espaço, mas ainda não sabe que
palavra usar para traduzir o desacato, quase institucionalizado, dos motoristas
com os pedestres. “Ainda bem que as calçadas daqui são bem largas. Dá para
desviar”, brinca o viajante.
Confira trechos da entrevista de Guy Tapie à Gazeta do Povo.
O senhor utilizou transporte público em Curitiba?
Sim. E também no Rio de Janeiro e em São Paulo...
É um sobrevivente... (risos)
De fato, andar de ônibus no Rio de Janeiro é algo
impressionante.
Agora é tarde, mas o senhor acha que Curitiba precisa de
metrô?
(risos) Não acho que seja necessário. Aqui há muitas linhas
de ônibus. É possível que algumas estejam saturadas, mas não sei se o metrô vai
resolver. Em Bordeaux, onde vivo, abandonamos a proposta de metrô nos anos 1980
e nos 1990 adotamos o trem de superfície. Admito que algumas linhas estão
saturadas, em especial as que vão para os câmpus universitários. Parecem vagões
de animais. Já se começa a falar outra vez em metrô. Em se tratando de
transporte, temos de considerar que não existem 50 mil soluções.
O senhor é um respeitado pesquisador de cidades, tem
autoridade no assunto. Devemos estar gratos à Fifa ou não? O que dizer da
intervenção maciça na cidade para uma Copa do Mundo?
Se o Brasil ganhar a Copa do Mundo, todos os inconvenientes
vão cair no esquecimento e a presidente Dilma será reeleita. Mas, se acontecer
o contrário, será bem complicado. A Copa serve mais para melhorar a reputação
de uma metrópole do que para melhorar a vida da população. Vira uma referência
– “ah, aquele lugar está preparado para receber grandes eventos”.
Existem vários estudos a respeito e a conclusão é de que
acontecimentos como Copa não ajudaram a melhorar muito os lugares. Pelo
contrário: deixam as prefeituras com déficit nos orçamentos, desdobrando-se
para compensar os gastos. Penso que uma Copa do Mundo mexe é com o imaginário
da cidade, não mais do que isso.
Acompanhou pela imprensa as manifestações de junho de 2013?
E os petit rolê (rolezinhos)? O Brasil não lhe parece mais um barril de pólvora
do que o cenário de uma Copa do Mundo?
(risos) Sim, acompanhei pelo noticiário... Eu diria que em
todas as manifestações sempre tem um pequeno grupo que aparece para quebrar. Do
que li, as manifestações foram populares e legítimas, uma reivindicação de
acesso ao transporte. Numa cidade como o Rio, não compensa ingressar no Minha
Casa, Minha Vida, e ir morar longe, sem ônibus. E tem o suborno, a corrupção,
que geram revolta. Entendo que o Brasil está no caminho para a maturidade
democrática. E que vocês querem ter mais controle sobre os editais de serviços
públicos. Desculpe comparar, mas na França, a licitação dos meios de transporte
segue um contrato draconiano. Fiquei admirado com o baixo grau de exigências
das concessões por aqui.
Qual sua conclusão a respeito?
É uma questão complexa. No Brasil, a passagem do rural para
o urbano se deu de forma massiva e num espaço de tempo muito curto. Países mais
antigos tendem a um controle maior, o que implica em especificações das
políticas e programas públicos. O detalhamento tende a ser completo. Além
disso, observo que faltam no Brasil técnicos especializados.
É a terceira vez que o senhor vem a Curitiba. O que lhe
impressiona na cidade?
O Parque Barigui. Me encanta. É um espaço público. Todas as
vezes em que fui até lá havia muita gente, de origens familiares e sociais
diferentes, com práticas distintas, mas todos utilizam...
Tem quem ligue para as rádios e escreva para os jornais,
reclamando justamente disso...
(risos) De minha parte, admirei bastante essa diversidade e
uma certa harmonia do local. As pessoas compartilham o mesmo espaço...
O que estudaria sobre o Brasil?
Três aspectos. Os condomínios fechados, as ocupações
irregulares e o programa Minha Casa, Minha Vida. Na França existem condomínios,
mas muito menos. Aqui, é um modelo que marca a paisagem. É como se para a
classe média fosse a única maneira de habitar a cidade. Impressiona: é vedado,
com guarda, aquele grande portão, um enclave, separado. Uma ilha artificial.
Quanto às favelas, são de uma grande diversidade. Me admira ter habitações bem
confortáveis, variedade de soluções urbanas. Já no que diz respeito ao Minha
Casa, Minha Vida, entendo a necessidade de construir tantas moradias, mas
lamento a falta de qualidade, de bons equipamentos, de cuidados com o entorno,
a baixa acessibilidade.
Urbanistas estrangeiros, em visita ao Brasil, tendem a
estranhar nossa “arquitetura de competição” – prédios parecem ser rivais uns
dos outros e têm pouca relação com a calçada, a exemplo dos condomínios de luxo
da Avenida Visconde de Guarapuava. O que lhe parece?
[pausa] Observei essa competição, mas entendo como uma forma
de liberalismo. Concordo. Não há uma régua delimitando o número de andares.
Ocorre o risco de muitos terem de ficar na sombra. De ponto de vista de organização
da cidade, não é muito bom. Mas não chega a ser um problema, porque as calçadas
são largas. O difícil aqui é na hora de atravessar a rua (risos). Vejo que
vocês não têm muito respeito pelos pedestres. O sistema de sentido único das
vias favorece o carro. Não vejo atenção com o ciclista. A arquitetura talvez
não esteja muito ligada ao espaço público. Ao entrar nos condomínios e nos
estacionamentos, os carros bloqueiam a calçada. O pedestre tem de se virar. O
que vai fazer? Daqui a 20, 30 anos, pode ser que seja diferente. É uma questão
de usos e de práticas.
Ao mesmo tempo, Curitiba vive um período de declaração de
amor à cidade. Temos os ativistas do Bosque Gomm, os ciclistas... O que lhe
parece? São apenas românticos?
O amor à cidade certamente não é compartilhado por todos. Há
uma categoria, a dos “urbanos”. São eles que agem assim. Vêm de um tipo de
cultura. Entendem o lugar onde moram como seu. Mas devemos considerar que esses
movimentos muitas vezes se transformam em políticas públicas. Chegam a
organizar a cidade. É o caso do uso da bicicleta. Em Copenhague, o índice de
ciclistas chega a 45% da população – é muito alto. Em Amsterdã, eles são tantos
e tão convictos que chegam a se zangar com quem pisa na pista errada.
O senhor acaba de lançar Sociologie de l´habitat
contemporain – Vivre l’architecure, resultado de seus estudos sobre moradia.
Uma das conclusões é de que as pessoas se refugiam no espaço doméstico,
isoladas pela tecnologia. Do que elas têm medo?
Da violência física. Do roubo. Da falta de civilidade... Mas
tem algo a mais – a sociedade dá demonstrações de ansiedade. Há o medo de
perder o status social, medo do que a globalização pode trazer, medo da
desestabilização, medo do desemprego. Em meio a tudo isso, as pessoas buscam se
firmar no que já conhecem: o lugar em que vivem. Privatizam a casa, recolhidas
do mundo, julgando que o bem-estar é sinônimo de espaço protegido.
Nesse tipo de habitação, o indivíduo superprotegido
concentra todos os recursos que existem. A casa em que habita passa a
representar ele mesmo. Nesse lugar, tem a possibilidade de decidir como faz ou
não faz a apropriação do mundo. Por essas e outras, o hábitat individual é uma
peça-chave para entender a sociedade.
Colaboraram Cristina de Araújo Lima e Brunno Covello.
Gazeta do Povo.09/03/2014 |
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