sábado, 15 de março de 2014

O petit rolê do sociólogo francês


Guy Tapie, pesquisador da Universidade de Bordeaux


O sociólogo francês Guy Tapie, 59 anos, fala poucas palavras em português. Tem se esforçado, já que está em sua terceira visita ao Brasil, como pesquisador de um convênio entre a Universidade de Bordeaux, a Universidade de Cincinatti (EUA) e a Universidade Federal do Paraná. Seu pequeno vocabulário inclui as palavras “Barigui”, o parque; “Guarituba”, a ocupação irregular; e o programa “Minha Casa, Minha Vida”.

Decorou-as por razões bem pessoais. Confessa-se fascinado pela convivência entre “diferentes” no Barigui. Estimulado pelas soluções urbanas que surgem em condições adversas, a exemplo da favela do Guarituba. E decepcionado pela velocidade com que o governo ergue casas populares sem dar muita “pelota” para o entorno.

Pudesse, estudaria todos esses assuntos. Quem sabe. Guy acaba de concluir uma longa investigação sobre habitação contemporânea em seu país, a França. A descrição dos resultados se assemelha, em parte, ao clima claustrofóbico do filme Caché, de Michel Haneke, em que um casal se sente ameaçado por vídeos domésticos. “As pessoas julgam que bem-estar é sinônimo de espaço protegido”, comenta.

Com o estudo da casa em fase de lançamento, faz também a divulgação da pesquisa realizada ao lado de americanos e brasileiros da UFPR. Guarda segredos. Sabe-se que trata das relações entre mobilidade, energia e “metropolização” – um conceito ainda pouco explorado, mas que diz respeito ao modo de vida em regiões urbanas mais desenvolvidas.

Se Curitiba for o próximo tema do sociólogo, não vai lhe faltar matéria-prima. Fez bons laboratórios por aqui. Guy Tapie não resiste a observar o uso que os curitibanos fazem do espaço, mas ainda não sabe que palavra usar para traduzir o desacato, quase institucionalizado, dos motoristas com os pedestres. “Ainda bem que as calçadas daqui são bem largas. Dá para desviar”, brinca o viajante.

Confira trechos da entrevista de Guy Tapie à Gazeta do Povo.

O senhor utilizou transporte público em Curitiba?

Sim. E também no Rio de Janeiro e em São Paulo...

É um sobrevivente... (risos)

De fato, andar de ônibus no Rio de Janeiro é algo impressionante.

Agora é tarde, mas o senhor acha que Curitiba precisa de metrô?

(risos) Não acho que seja necessário. Aqui há muitas linhas de ônibus. É possível que algumas estejam saturadas, mas não sei se o metrô vai resolver. Em Bordeaux, onde vivo, abandonamos a proposta de metrô nos anos 1980 e nos 1990 adotamos o trem de superfície. Admito que algumas linhas estão saturadas, em especial as que vão para os câmpus universitários. Parecem vagões de animais. Já se começa a falar outra vez em metrô. Em se tratando de transporte, temos de considerar que não existem 50 mil soluções.

O senhor é um respeitado pesquisador de cidades, tem autoridade no assunto. Devemos estar gratos à Fifa ou não? O que dizer da intervenção maciça na cidade para uma Copa do Mundo?

Se o Brasil ganhar a Copa do Mundo, todos os inconvenientes vão cair no esquecimento e a presidente Dilma será reeleita. Mas, se acontecer o contrário, será bem complicado. A Copa serve mais para melhorar a reputação de uma metrópole do que para melhorar a vida da população. Vira uma referência – “ah, aquele lugar está preparado para receber grandes eventos”.

Existem vários estudos a respeito e a conclusão é de que acontecimentos como Copa não ajudaram a melhorar muito os lugares. Pelo contrário: deixam as prefeituras com déficit nos orçamentos, desdobrando-se para compensar os gastos. Penso que uma Copa do Mundo mexe é com o imaginário da cidade, não mais do que isso.

Acompanhou pela imprensa as manifestações de junho de 2013? E os petit rolê (rolezinhos)? O Brasil não lhe parece mais um barril de pólvora do que o cenário de uma Copa do Mundo?

(risos) Sim, acompanhei pelo noticiário... Eu diria que em todas as manifestações sempre tem um pequeno grupo que aparece para quebrar. Do que li, as manifestações foram populares e legítimas, uma reivindicação de acesso ao transporte. Numa cidade como o Rio, não compensa ingressar no Minha Casa, Minha Vida, e ir morar longe, sem ônibus. E tem o suborno, a corrupção, que geram revolta. Entendo que o Brasil está no caminho para a maturidade democrática. E que vocês querem ter mais controle sobre os editais de serviços públicos. Desculpe comparar, mas na França, a licitação dos meios de transporte segue um contrato draconiano. Fiquei admirado com o baixo grau de exigências das concessões por aqui.

Qual sua conclusão a respeito?

É uma questão complexa. No Brasil, a passagem do rural para o urbano se deu de forma massiva e num espaço de tempo muito curto. Países mais antigos tendem a um controle maior, o que implica em especificações das políticas e programas públicos. O detalhamento tende a ser completo. Além disso, observo que faltam no Brasil técnicos especializados.

É a terceira vez que o senhor vem a Curitiba. O que lhe impressiona na cidade?

O Parque Barigui. Me encanta. É um espaço público. Todas as vezes em que fui até lá havia muita gente, de origens familiares e sociais diferentes, com práticas distintas, mas todos utilizam...

Tem quem ligue para as rádios e escreva para os jornais, reclamando justamente disso...

(risos) De minha parte, admirei bastante essa diversidade e uma certa harmonia do local. As pessoas compartilham o mesmo espaço...

O que estudaria sobre o Brasil?

Três aspectos. Os condomínios fechados, as ocupações irregulares e o programa Minha Casa, Minha Vida. Na França existem condomínios, mas muito menos. Aqui, é um modelo que marca a paisagem. É como se para a classe média fosse a única maneira de habitar a cidade. Impressiona: é vedado, com guarda, aquele grande portão, um enclave, separado. Uma ilha artificial. Quanto às favelas, são de uma grande diversidade. Me admira ter habitações bem confortáveis, variedade de soluções urbanas. Já no que diz respeito ao Minha Casa, Minha Vida, entendo a necessidade de construir tantas moradias, mas lamento a falta de qualidade, de bons equipamentos, de cuidados com o entorno, a baixa acessibilidade.

Urbanistas estrangeiros, em visita ao Brasil, tendem a estranhar nossa “arquitetura de competição” – prédios parecem ser rivais uns dos outros e têm pouca relação com a calçada, a exemplo dos condomínios de luxo da Avenida Visconde de Guarapuava. O que lhe parece?

[pausa] Observei essa competição, mas entendo como uma forma de liberalismo. Concordo. Não há uma régua delimitando o número de andares. Ocorre o risco de muitos terem de ficar na sombra. De ponto de vista de organização da cidade, não é muito bom. Mas não chega a ser um problema, porque as calçadas são largas. O difícil aqui é na hora de atravessar a rua (risos). Vejo que vocês não têm muito respeito pelos pedestres. O sistema de sentido único das vias favorece o carro. Não vejo atenção com o ciclista. A arquitetura talvez não esteja muito ligada ao espaço público. Ao entrar nos condomínios e nos estacionamentos, os carros bloqueiam a calçada. O pedestre tem de se virar. O que vai fazer? Daqui a 20, 30 anos, pode ser que seja diferente. É uma questão de usos e de práticas.

Ao mesmo tempo, Curitiba vive um período de declaração de amor à cidade. Temos os ativistas do Bosque Gomm, os ciclistas... O que lhe parece? São apenas românticos?

O amor à cidade certamente não é compartilhado por todos. Há uma categoria, a dos “urbanos”. São eles que agem assim. Vêm de um tipo de cultura. Entendem o lugar onde moram como seu. Mas devemos considerar que esses movimentos muitas vezes se transformam em políticas públicas. Chegam a organizar a cidade. É o caso do uso da bicicleta. Em Copenhague, o índice de ciclistas chega a 45% da população – é muito alto. Em Amsterdã, eles são tantos e tão convictos que chegam a se zangar com quem pisa na pista errada.

O senhor acaba de lançar Sociologie de l´habitat contemporain – Vivre l’architecure, resultado de seus estudos sobre moradia. Uma das conclusões é de que as pessoas se refugiam no espaço doméstico, isoladas pela tecnologia. Do que elas têm medo?

Da violência física. Do roubo. Da falta de civilidade... Mas tem algo a mais – a sociedade dá demonstrações de ansiedade. Há o medo de perder o status social, medo do que a globalização pode trazer, medo da desestabilização, medo do desemprego. Em meio a tudo isso, as pessoas buscam se firmar no que já conhecem: o lugar em que vivem. Privatizam a casa, recolhidas do mundo, julgando que o bem-estar é sinônimo de espaço protegido.

Nesse tipo de habitação, o indivíduo superprotegido concentra todos os recursos que existem. A casa em que habita passa a representar ele mesmo. Nesse lugar, tem a possibilidade de decidir como faz ou não faz a apropriação do mundo. Por essas e outras, o hábitat individual é uma peça-chave para entender a sociedade.


 JOSÉ CARLOS FERNANDES

Colaboraram Cristina de Araújo Lima e Brunno Covello.

Gazeta do Povo.09/03/2014 |

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