"O Dairan Paul, da Universidade Federal de
Santa Maria, me pediu uma entrevista sobre literatura. Republico-a abaixo, no
caso de que interesse a alguém.
1) Um estudo da professora Regina Dalcastagnè,
da UnB, revelou alguns dados sobre a produção literária brasileira entre os
anos de 1990-2004: 72,7% dos romances foram escritos por homens, sendo que
93,9% dos autores são brancos. O que você pensa sobre essa exclusão que existe
no campo literário? Podemos afirmar que há um elitismo no campo literário, ao
menos no Brasil?
Sem dúvida, há um componente de elitização que
acompanha a literatura, muito especialmente no Brasil, dado o abismo de
letramento que constitui a sociedade brasileira. Mesmo em comarcas mais
comparáveis à nossa, como a Argentina, isso não se aplica da mesma forma, posto
que lá a própria constituição do estado nacional foi mediada por um processo
letrado. Nesse sentido, os resultados da pesquisa de Regina não surpreendem. O
que posso dizer é que conheço bem o rigor e a seriedade do trabalho anterior de
Regina, mas dessa pesquisa, em particular, só li, até agora, resumos e
reportagens. Seria leviano tecer qualquer consideração sem ler a pesquisa na
íntegra, o que pretendo fazer em breve, embora, à primeira vista, tanto os
resultados como a inspiração do trabalho só reforcem minha admiração por ela.
2) Alguns críticos escrevem que a literatura
marginal é um mero relato cotidiano, sem valor literário e apreciação estética
de um texto canônico. Como isso se diferenciaria de textos de autores
consagrados, como Rubem Fonseca, que escrevem também sobre estes espaços
periféricos?
Sobre isso, sim, acredito que posso lhe dizer
algo, tendo trabalhado um pouco com as noções de valor estético e de cânone
literário. Consultando uma publicação minha na Revista Brasileira de Literatura
Comparada de 2009 (http://bit.ly/16SyQjt), você terá os fundamentos. A resposta
curta é: basicamente, em nada. Não se diferenciam em nada relevante. É evidente
que o texto de Rubem Fonseca é diferente do texto de Ferrez. Dizê-lo é recorrer
a uma tautologia. Relevante, aqui no caso, é outra coisa. É o fato de que não
há nada, no texto de Rubem Fonseca, que o faça intrínseca, imanentemente dotado
de um valor literário, estético, ausente no texto de Ferrez. Se você quiser
determinar por que o primeiro circula legitimado pelos códigos da estética e o
segundo, não, você terá que ir a outro lugar: aos processos de produção,
circulação e consumo desses textos e à constituição de pactos e comunidades
interpretativas que legitimam certos objetos como estéticos e outros, não.
Claro que não se trata de uma operação puramente vertical, conspiratória. Essa
legitimação se dá no interior de lutas interpretativas que não estão imunes a
fluxos contra-hegemônicos. Mas há que se desbancar o raciocínio tautológico que
elenca características imanentes à obra dotada de valor estético,
estabelecendo-as através de uma lista de autores que supostamente as
possuiriam, lista à qual, é claro, só se chega por uma busca daquelas mesmas
características de que você partiu no começo do raciocínio. Como costumo dizer,
não é à toa que os alunos não aceitem isso facilmente. Eles estão certíssimos.
3) A literatura pode perpetuar preconceitos e/ou
ideologias? O que você pensa de casos como o de Monteiro Lobato, acusado de
racismo em suas obras?
Sim, evidentemente a literatura pode perpetuar
preconceitos e ideologias. No caso de Monteiro Lobato, eu teria que recomendar
o texto de Ana Maria Gonçalves, “Não é sobre você que devemos falar”
(http://bit.ly/16SzFJe), a melhor análise que conheço dessa questão. O que é
mais notável no caso de Lobato é a fúria com que se reagiu a uma descoberta
filológica banal, patente: a de que Lobato foi, sistemática, reiteradamente, um
propagandista não só do racismo mais odioso como um defensor do extermínio de
negros e um admirador da Ku Klux Klan. Incapaz de retrucar ao simples
empilhamento de citações, evidências e provas do fato, o negacionista
brasileiro recorre, em geral, a uma operação curiosa. Ele dá testemunho de ter
lido Lobato e não ter se tornado racista. Descobri, ao longo de minha
participação neste debate, que Lobato deve ter sido lido por dezenas de milhões
de pessoas, mais gente do que os milhões que declaram ter estado no acanhado
estádio da Rua Javari quando Pelé fez seu famoso, e não filmado, gol de placa
contra o Juventus. Mais notável ainda, todos eles declaram com absoluta certeza
não terem se tornado racistas, num país em que mais de 90% da população
reconhece a existência do racismo (ao mesmo tempo em que, claro, mais de 90%
declara não ter nenhum preconceito racial). O brasileiro branco se acha uma
ilha de tolerância cercada de racismo por todos os lados, mas basta colocar em
pauta um caso óbvio, gritante de racismo, para que o negacionismo se veja de
forma nítida, em geral com um furor que recorre a termos como “censura” antes
sequer de que se coloque em pauta o problema de se indicar ou não livros de um
racista como ele a crianças de nove ou dez anos de idade na escola pública. O
caso Lobato é uma grande lição sobre os mecanismos através dos quais opera o
negacionismo no Brasil.
4) Por fim, a função social da literatura não se
perderia nessa falta de representação não-estereotipada de minorias? Você
encara a produção literária atual do Brasil com otimismo ou pessimismo?
Para isso, inspiro-me em Walter Benjamin e, portanto, acredito que otimismo e pessimismo são duas faces da mesma moeda. Não vejo a História como progresso e não acredito em períodos de declínio. Creio que as avaliações totalizadoras do presente padecem de excessiva generalização e insuficiente leitura. Dedico boa parte de meu tempo à leitura da literatura brasileira contemporânea e não entendo como alguns, que visivelmente leram muito pouco, proclamam com tanta certeza que vivemos um período de declínio. O argumento de que “já não há Clarices ou Rosas” é risível, posto que o conceito de valor literário com o qual trabalhamos hoje, no interior das comunidades interpretativas que leem e avaliam a literatura brasileira, foi, em grande parte, estabelecido pela própria Clarice e pelo próprio Rosa – ou seja, pela circulação, canonização e consumo de seus textos. Dizer que “já não há Clarices ou Rosas” é, portanto, continuar no terreno da tautologia. O que posso lhe dizer é que há inúmeros autores vivos que continuo lendo com enorme gosto e proveito: Milton Hatoum, Zulmira Ribeiro Tavares, Cristóvão Tezza, João Gilberto Noll, Ana Miranda, Carlos Sussekind, Ricardo Lísias, Silviano Santiago, Rubens Figueiredo, Santiago Nazarian, Luiz Ruffato, Ana Maria Gonçalves, Chico Buarque de Hollanda, Veronica Stigger, Ariano Suassuna, Carola Saavedra, Bernardo Carvalho, Paulo Lins, Fabio Weintraub, Elvira Vigna-Marú, Paulo Henriques Britto, Carlito Azevedo, Manoel de Barros, Eduardo Sterzi, Ricardo Guilherme Dicke, Ferrez e Pádua Fernandes são apenas alguns dos meus favoritos. Não me parece uma era de declínio."
Idelber Avelar Guarani
Kaiowá - por Mario Pinheiro.
Fonte : Haya del Bel
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