Johann W. Goethe (1749-1832)
Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister.
Comentários de Georg Lukács.
“A realização dos ideais humanistas neste romance comprova reiteradamente a necessidade de, ‘na medida em que se trate de algo puramente humano, rejeitar nascimento e classe social, em sua completa nulidade, e na verdade, como é razoável, sem gastar sequer uma palavra sobre isso’ (Schiller). A exposição e a crítica às diversas classes e aos tipos que a representavam procedem sempre, em Os Anos de Aprendizado, desse ponto de vista à central. Por isso, a crítica à burguesia não é aqui apenas crítica a uma pequenez e estreiteza especificamente alemãs, mas também e ao mesmo tempo uma crítica à divisão capitalista do trabalho, à excessiva especialização do ser humano, ao aniquilamento do homem por essa divisão do trabalho.
O burguês, diz Wilhelm Meister, não pode ser uma pessoa pública: ‘Um burguês pode adquirir méritos e desenvolver seu espírito a não mais poder, mas sua personalidade se perde, apresente-se ele como quiser/.../. Não lhe cabe perguntar: ‘Que és tu? , e sim ‘Que tens tu? Que juízo, que conhecimento, que aptidão, que fortuna?’ /.../ ele deve desenvolver suas diversa faculdades para tornar-se útil, e já presume que não há em sua natureza nenhuma harmonia, nem poderia haver, porque ele, para se fazer útil de determinado modo, deve descuidar de todo o resto’”.
“A realização dos ideais humanistas é neste romance não só o parâmetro para julgar as diversas classes e seus representantes, como também a força propulsora e o critério da ação de todo o romance. Em Wilhelm Meister e em muitas outras personagens desta obra, a realização dos ideais humanistas em suas vidas é a mola propulsora mais ou menos consciente de suas ações. /.../ Assim, coloca no centro deste romance o ser humano, a realização e o desenvolvimento de sua personalidade, com uma clareza e concisão que dificilmente um outro escritor haverá conseguido em alguma outra obra da literatura universal. É claro que essa visão de mundo não é propriedade particular de Goethe. Ela domina antes toda a literatura européia desde o Renascimento; constitui o ponto central de toda a literatura do Iluminismo.
O traço peculiar do romance goethiano mostra-se contudo no fato de que, por um lado, essa visão do mundo se põe no centro de tudo com uma elevada consciência, acentuada permanente de modo filosófico, ou pelo estado de ânimo, ou relacionada com a ação a ponto de se transformar na força motriz consciente de todo o mundo configurado; e, por outro lado, essa peculiaridade consiste em que Goethe nos apresente como um devir real de seres humanos concretos em circunstâncias concretas essa realização da personalidade plenamente desenvolvida com que o Renascimento e o Iluminismo sonharam, e que na sociedade burguesa tem sempre permanecido como utopia. /.../ Schiller caracterizou repetidamente em suas cartas, com extrema sutileza, a peculiaridade estilística deste livro único. Chama-o uma vez de ‘calmo e profundo, claro e no entanto inconcebível, como a natureza’. E não se trata absolutamente de uma pretensa ‘maestria’ técnica do escrever.
A superior cultura do modo de configuração de Goethe baseia-se antes numa superior cultura da vida mesma, do modo de viver, das relações entre os homens. É por isso que representação pode ser tão terna e sutil, tão plástica e clara, porque a concepção do homem e das relações humanas na vida mesma têm em Goethe uma cultura dos sentimentos autêntica e profundamente consciente. Goethe não precisa lançar mão de meios analíticos grosseiros nem pseudo-sutis para configurar conflitos humanos, transformações dos sentimentos, das relações humanas etc./.../ A maestria de Goethe é um captar profundo de todos os traços mais essenciais dos homens, um elaborar dos traços típicos comuns e dos traços individuais distintivos dos homens, uma sistematização cuidadosamente pensada e conseqüente dessas afinidades, desses contrastes e matizes, uma capacidade de converter todos esses traços humanos em ação viva e caracterizadora. Os seres humanos desse romance estão agrupados de um modo praticamente exclusivo em torno da luta pelo ideal do humanismo, em torno da questão dos dois extremos falsos: o sentimentalismo e o praticismo. /... Neste tipo de representação, cujos píncaros o romance moderno nunca voltou a atingir, ainda que seus grandes representantes posteriores tenham superado Goethe em muitos outros aspectos, há para nós um legado irrenunciável.
In: GOTHE, Johann W. Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister. São Paulo, Ensaio, 1995.
Heinrich Mann (1871-1950)
A Juventude do Rei Henrique IV
Comentários de Georg Lukács.
“A concepção de Heinrich Mann a respeito de uma humanidade real e vitoriosa – manifesta em Henrich IV – patê também em seu caso, como em qualquer escritor realista de verdadeira importância, da convicção de que na própria vida, no homem, na realidade objetiva da sociedade, estão presentes os traços verdadeiramente grandes da humanidade, e que o escritor não tem senão que os reproduzir de forma concentrada com os meios próprios à arte.
Os terríveis acontecimentos posteriores à tomada de poder por Hitler abriram seus olhos para esta realidade heróica, que não se reduz ao ser contemplada de perto, nem pode ser engrandecida pela monumentalização. Heinrich Mann descreveu repetidamente em seus artigos, de modo comovedoramente simples e acertado, essas aparições de uma nova humanidade heróica. E muitos elementos de Henrique IV revelam esse novo espírito.
Henrique IV – de extraordinária importância histórica e literária – é, na obra de seu autor, continuação de sua publicística pela popularização da democracia francesa entre a intelectualidade alemã; na história da democracia revolucionária alemã, esse romance é uma renovação das grandes lutas ideológicas dos anos trinta e quarenta do século passado”.
In: MANN, Heinrich. A Juventude do rei Henrique IV. São Paulo, Ensaio, 1993.
Tomas Mann (1875-1955)
Carlota em Weimar
Mann maduro ilumina obra do jovem Goethe
Escrita dois séculos depois e num estilo diferente, `Carlota em Weimar' cria laços com `Werther' e estabelece uma simbiose que reúne o melhor das letras alemãs.
Comentários de José Castello.
ASSUNTO: THOMAS MANN * Carlota em Weimar, de Thomas Mann. Editora Nova Fronteira.
Um grande livro, Carlota em Weimar (Editora Nova Fronteira, 384 págs.), de Thomas Mann, que retoma, amplia, põe em questão, lança luzes inesperadas sobre outro livro ainda maior, o Werther, de Goethe. A atmosfera se altera, do ambiente asfixiante que vigora no livro de Johann Goethe (1749-1832), para a respiração de equilibrista, com fôlego controlado, exercitada por Thomas Mann (1875-1955). A escrita, na novela de Goethe enroscada e nervosa, no livro de Mann se torna geométrica e meditativa. Há não apenas um salto de dois séculos entre as datas de publicação dos dois livros; existe também um intervalo temporal mais subjetivo já que, enquanto o Werther é uma novela de juventude, que Goethe escreveu aos 24 anos, Carlota em Weimar é um romance de maturidade, que Mann escreveu quando já estava com 63. Dois livros absolutamente diversos, portanto, que, no entanto, ligados por uma conexão tardia, lançada pelo gênio de Mann, se entrelaçam na longa cadeia que forma a melhor literatura alemã.
No Werther, romance que se transformou numa das mais célebres narrativas do século 18, Goethe relata a história de um rapaz que vive a desgraça de se apaixonar pela noiva de seu maior amigo. Carlota, mulher que embriaga Werther, representa - contra o sentimentalismo exacerbado e onipotente do Eu apaixonado, que ele encarna - a lei, a nobreza da amizade, a civilização. O relato, com um dos desfechos mais célebres da história literária, o suicídio de Werther, dificilmente se lê (ou relê) sem algum abalo interior. Em Carlota em Weimar, ao contrário, a leitura transcorre com a placidez de um grande rio que avança, inexorável, para o fim. Mann reencontra Carlota, já sexagenária, no momento em que ela faz uma viagem sentimental a Weimar. O principal objetivo é, reencontrar Goethe, agora velho e um tanto isolado do mundo - o homem que nela se inspirou para compor um personagem fabuloso e que, com isso, a imortalizou.
Werther é um livro embriagante, que tem como tema um dos aspectos mais fortes da juventude: os fracassos diante do solavanco das paixões e a luta, quase desumana, que os jovens travam para a ele sobreviver. É uma novela sobre a fraqueza, sobre o fracasso, sobre o homem devastado nas costas de quem a paixão galopa e tripudia; e por isso, por tratar de estados extremos, vendeu tanto, mereceu tantas traduções e, copiando o drama do personagem central, estimulou tantos suicídios. Já Mann escreveu Carlota em Weimar em sua fase de ouro, que começou com a publicação de A Montanha Mágica, estendeu-se por José e seus Irmãos (livro caudaloso contemporâneo a Carlota, que foi escrito entre o terceiro e o quarto volume do outro) e, por fim, o Doutor Fausto. Mais que nunca, Mann trabalha com as questões cruciais do ser humano - e foi por isso, mais que por qualquer outro aspecto, que, em 29, recebeu o Nobel de Literatura. Apesar disso, em 33, Mann foi obrigado a exilar-se para fugir da expansão do nazismo - que, de certa forma, está anunciado em sua obra. Thomas Mann é, como definiu Otto Maria Carpeaux, um escritor clássico - da mesma linhagem de um Balzac, um Flaubert, um Conrad, e não um triturador de espíritos e de expectativas como Kafka. Um autor que, desde cedo, tem como grande referência o estilo sóbrio da velhice de Goethe (época em que na obra de Goethe predomina um estilo extratemporal, que muitos comparam ao Beethoven maduro; e não o estilo embriagado que rege o Werther), sendo curioso que, apesar disso, resolva dialogar com um romance que o autor do Doutor Fausto escreveu quando ainda estava com seus 20 anos.
Carlota em Weimar é um romance escrito num momento em que Mann estava interessado em discutir as relações entre a civilização (com suas regras, cânones, proibições) e o domínio da cultura (lugar da invenção, da liberdade, do irracional). Mann, leitor e admirador de Sigmund Freud, deixou-se pautar pelas teses freudianas - em particular, por aquelas mais pessimistas que têm seu momento de síntese numa obra-prima como Mal-estar na Civilização, livro que o fundador da psicanálise publicou em 1930, nove anos antes do lançamento de Carlota em Weimar. Desde A Montanha Mágica, de 1924, Mann quebrara em definitivo as fronteiras que separam a ficção do ensaio; e é este gênero híbrido, lento, cheio de divagações e reminiscências, cheio de pensamentos, que ele, maduro e sereno, exercita magistralmente em Carlota.
O tema de Carlota em Weimar é a ambigüidade inerente a toda criação humana - em particular, os efeitos que a arte provoca no real, a falsificação que nele opera, que tanto pode ser vista como mentira perigosa, como criação genial. Instalada, em 1816, na hospedaria O Elefante, em Weimar, Carlota Kestner, acompanhada da filha e de uma empregada, reencontra-se com seu passado - ou, ao menos, com aquele passado que Goethe, inspirando-se nela para um livro e transformando-a na Lotte, de Werther, lhe emprestou. O motivo aparente é uma visita à irmã, a Conselheira Ridel, que não vê há muito tempo; mas o que a interessa, de fato, é a chance de rever Goethe. Já em suas Memórias, Goethe se queixa da curiosidade das pessoas que desejavam saber quem era e onde vivia a autêntica Lotte; a curiosidade dos leitores foi mais forte que seu desejo de preservá-la. Agora, tantos anos depois, Carlota Kestner lhe escreve um bilhete, anunciando sua chegada a Weimar e falando de seu desejo de revê-lo - situação de susto, como se uma mulher saísse de dentro de um livro.
Thomas Mann escreveu Carlota em Weimar num estilo lento, pontuado por digressões, meditações e ponderações, um estilo trançado em diálogos minuciosos em que as lembranças pessoais dos personagens se mesclam com os acontecimentos recentes da história alemã, as lutas pelo poder e pelo prestígio, mas também derrotas e decepções. Vitórias e decepções contidas igualmente na arte - fato que o percurso pessoal de Carlota vem atestar. "É sabido, todos nós sabemos, e toda a humanidade o compreende bem, que a senhora e seu esposo, que descanse em paz, sofreram muito com a indiscrição do gênio", lhe diz, em dado momento do livro, o Dr. Riemer, ele próprio um figurante no Werther. E que naquele momento trabalha com as Obras Completas, de Goethe. Ao se transformar em personagem, Carlota ficou marcada para o bem e para o mal, bem e mal que a arte carrega consigo, tanto para o criador, como para aqueles que se deixam tocar pela obra criada. Apesar desse peso, ela defende Goethe e seu poder de apoderar-se e de manipular o real a seu favor. "Werther é uma roda, na qual tomo parte", Carlota diz, resignada, "uma roda imortal, na qual o destino me fez tomar parte. Não quero queixar-me dele". Apesar disso, admite, sempre que relê o Werther enche-se de vergonha.
Personagem destacado no romance de Mann, August, filho de Goethe, resigna-se também, limitando-se a servir ao pai velho nas coisas do mundo prático, sabendo-se muito aquém daquele que o gerou. Goethe está doente, cheio de mazelas físicas (tosses compulsivas, fraqueza nervosa, dores incuráveis, convulsões), que algumas vezes quase o levaram à sepultura e às quais vai sobrevivendo. Sobrevive inclusive a seu grande amigo, o poeta e dramaturgo Johann Christoph Schiller, falecido em 1805 (sete anos antes da visita de Carlota a Weimar), de quem sente agora uma grande falta. Carlota encontra-se com August, o filho de Goethe, e tem com ele uma longa e dolorosa conversa, pontuada de citações paternas. O rapaz recorda, por exemplo, que para o velho Goethe, mais que os cuidados médicos ou uma vida saudável, o grande apoio é a poesia. "O instrumento mais indicado para vencer por si mesmo as dificuldades, e dissolvê-las, é sem dúvida alguma o talento poético, a confissão poética", diz, repetindo as reflexões do pai.
Carlota em Weimar é também uma delicada meditação sobre o destino do artista, tema que preocupará Mann até o fim de sua vida. Já velha, Carlota medita sobre as seqüelas que a arte (no caso o Werther, de Goethe) nela produziu; inspirando-se nela para compor sua personagem, Goethe a imortalizou mas, de certa forma, também a matou, já que existe um abismo entre ambas. Interessante pensar em Weimar, uma vez que Mann, antes defensor da mística alemã, agora se converte ao humanismo e ao espírito libertário que caracterizaram a República de Weimar - que dominou importante período da história alemã. Mann começou a escrever Carlota em Weimar em seu exílio suíço, e concluiu-o quando já estava nos Estados Unidos, como professor em Princeton, já envolvido também, e furiosamente, com a propaganda anti-nazista. Mann já era, nesse momento, um escritor totalmente ciente de seu papel na vida pública. Desde 22, em célebre discurso, já tomara posição pela República de Weimar, preocupações que sintetizaria, dois anos depois, em seu famoso romance A Montanha Mágica.
As idéias de Mann sobre a arte estão contidas, sobretudo, no capítulo 7, com o magnífico monólogo do velho Goethe, ainda deitado em seu leito, logo depois de acordar de uma noite cheia de provações físicas. Goethe - que está enterrado em Weimar - é o herói oculto de Carlota em Weimar. "Esta é a colcha de seda de minha cama em Weimar", Goethe começa seu monólogo, "a tapeçaria da parede de minha casa, o puxador da campainha..." Vai apalpando o real que o cerca, e que parece tão sobrecarregado de mistérios, e com ele repuxa a memória e assim, nesse estado fronteiriço do sonho com o real, inicia uma inesquecível reflexão sobre as ambigüidades que cercam a condição do artista; tema que levaria ao extremo no Fausto. "O homem não pode permanecer consciente por muito tempo; às vezes tem de se refugiar na inconsciência, pois nela vive sua raiz", medita. Massacrado pelos tormentos da velhice, o poeta reflete que, uma vez transformado em ruína, ao homem cabe fazer dela uma coisa "grande e maravilhosa", que deve ser saudada, e não recusada. "O pardal escreveu Werther com uma leveza ridícula, mas já era alguma coisa, para a idade", Mann reflete, pela boca de Goethe, sobre o grande livro. "Mas viver e envelhecer! Isso é que é".
Conformado, descobrindo as vantagens da decadência física que alarga o espírito, separando-se das circunstâncias, afastando-as como névoa que só deforma, Goethe (que já não tem forças para escrever um grande livro, que se chamaria Cosmos, título sugerido por Schiller) lamenta que a arte esteja amarrada e limitada por considerações mesquinhas em sua audácia natural. "A vida precisa de reforço, o vivo é fraco; é necessário que o façamos reviver robustecido pelo espírito", diz, refletindo ainda sobre a identidade desse espírito para um homem que, como ele, se declara pagão. A origem dessa força, já que não existe ser superior algum, deve ser buscada, ele diz, na natureza, reflete. "Natureza! Entretanto, você me foi dada em mim mesmo - percebo-a no mais profundo através de mim mesmo", reflete, chegando a esse nó em que a arte, outra vez para o bem ou para o mal, não pode ser separada do narcisismo. É nessa viagem interior que Mann retrata Goethe - fazendo assim, quando a velhice também começa a atormentá-lo, sua própria depuração existencial. O resultado é um romance denso, de leitura não muito fácil, enroscado e minucioso como toda a literatura de Mann, solene em geral, mas sereno, que exige um leitor disposto a rever-se e a meditar. Além de ser um encontro, que só a literatura poderia promover, entre dois escritores fabulosos.
Disponível em < http://vbookstore.uol.com.br/ensaios/index.shtml
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