quinta-feira, 5 de julho de 2012

Lições de Adonis, canções para a morte

Um dos grandes inovadores da poesia árabe, o sírio de 82 anos é destaque da Flip, festa literária que começa amanhã
03 de julho de 2012

UBIRATAN BRASIL, ENVIADO ESPECIAL / RIO – O Estado de S.Paulo

Vestido com elegância discreta, o poeta sírio Adonis, de 82 anos, chega exibindo um cabelo grisalho ligeiramente desgrenhado, sorriso aberto, voz baixa e tranquila. Mas os olhos parecem sempre estar buscando o seu alvo e, quando começa a falar, o senhor de gestos cavalheiros revela sua força. “Quero sempre questionar, não buscar respostas”, diz ele, um dos principais nomes da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, cuja 10ª edição começa amanhã, na cidade fluminense.

Adonis, cujo verdadeiro nome é Ali Ahmad Said Esber, é um dos principais críticos dos atuais acontecimentos políticos que chacoalham diversos países árabes, a começar pelo seu. Inicialmente empolgado com a eclosão da Primavera Árabe no ano passado (chegou a compor pequenos poemas para exprimir sua satisfação), ele logo retomou seu ceticismo. “Quando as revoluções começaram, eram lideradas por jovens e revelavam algo inédito: pela primeira vez, nós, muçulmanos, não estávamos copiando algo do Ocidente”, disse o poeta, que conversou com o Estado ontem pela manhã, em um hotel de luxo do Rio. “Logo, porém, os islamitas, os comerciantes e, especialmente, os americanos mostraram que estávamos apenas trocando de ditaduras.”

Autoexilado em Paris desde 1985, depois de uma passagem pelo Líbano, Adonis realmente veio para confundir, não para explicar. Autor de uma poesia estranha, “que evoca ao mesmo tempo a origem da própria poesia e o que nela há de mais moderno”, no entender do escritor Milton Hatoum (ele assina o prefácio do livro Poemas, lançado agora pela Companhia das Letras, com cuidadosa tradução de Michel Sleiman), ele se destaca como uma das vozes fundamentais da cultura árabe, na qual ecoa sua insubmissão à dominância religiosa.

“A poesia não pode mudar a sociedade”, argumenta, “mas só pode alterar a noção de relações entre as coisas. A cultura não pode ser melhorada sem uma mudança nas instituições. A poesia é como o amor, que constantemente renova os sentimentos do povo, revigora e abre horizontes para a beleza da vida. E isso não acontece apenas no nível individual, pois um poema torna-se essencial quando a ciência ou a filosofia não oferece respostas para o mistério da vida.”

Fiel a esse pensamento, Adonis surpreendeu no ano passado quando declarou que a cultura árabe tinha se extinguido. Na verdade, depois do impacto provocado pela afirmação, ele foi mais sucinto, dizendo que ainda havia talentos em diversas áreas criativas, mas eram figuras isoladas. “A civilização árabe como um todo tornou-se consumidora dos outros e deixou de ser criadora – desapareceu nossa presença criativa. Isso é extremamente alarmante.”

Falando especificamente de sua área, Adonis defende que a poesia criada hoje entre seus pares é essencialmente superficial. “A poesia requer um esforço real porque exige que o leitor se transforme, como o poeta, em um criador.”

Apesar de criticado, seu discurso não foi contestado. Afinal, Adonis é um dos principais renovadores da poesia árabe atual, promovendo uma revolução poética que, no Ocidente, só aconteceu depois de uma sucessão de trabalhos de autores de diversas procedências.

Adepto do multiculturalismo, Adonis não apenas cultivou suas raízes como estabeleceu íntima relação com a poesia ocidental, especialmente com Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, Nerval e Breton. “Adonis assimilou as vozes desses e outros poetas até encontrar um modo próprio e inovador para expressar seu lirismo”, afirma Hatoum, ainda no prefácio do livro. O brasileiro, aliás, almoça hoje com o colega sírio, no Rio de Janeiro.

A pluralidade explica a adoção do pseudônimo: um deus pagão no qual a presença da cultura pré-islâmica e pan-mediterrânea é muito forte. Trata-se, portanto, não apenas de uma postura poética mas principalmente política, sem que isso implique em uma ligação com o partidarismo. Adonis observa, por exemplo, uma forte tendência, entre os artistas árabes, de serem politicamente engajados.

“Não sou contra esse engajamento, ou mesmo contra os artistas – mas não sou como eles”, acredita. “Um criador precisa sempre estar próximo do que é revolucionário, mas nunca agir como um revolucionário. Ele não pode falar a mesma língua e tampouco trabalhar no mesmo ambiente político.”

Pouco conhecedor da poesia brasileira (”Lamento dizer que li apenas alguns versos de Haroldo de Campos e, mesmo assim, traduzidos para o francês, o que tira sua essência”), Adonis é figura constante na lista de apostas quando se aproxima o anúncio do vencedor do Nobel de literatura. E, se a cada ano acaba preterido, a vitória do sueco Tomas Tranströmer no ano passado praticamente jogou sua chance para um futuro incerto – não se acredita que a Academia Sueca vá premiar dois poetas seguidamente.

Isso parece sinceramente não o importunar. Adonis não avalia o próprio trabalho, preferindo que isso seja tarefa de seu interlocutor, seja com quem esteja conversando naquele momento, seja um leitor distante. Essa troca é seu combustível vital. “Vivo em eterna criação”, conta. “Enquanto converso com você, algo vai acontecendo no lado criativo da minha mente, que não para, trabalha incessantemente. O mesmo aconteceu enquanto tomava meu café da manhã e deverá se repetir quando encontrar meus leitores em Paraty. A vida é uma constante troca de ideias.”

“A morte quando passa por mim é como se

o silêncio a abafasse…

…é como se dormisse quando eu dormisse.

Ó mãos da morte, alonguem meu caminho

meu coração é presa do desconhecido,

alonguem meu caminho

quem sabe descubro a essência do impossível


e vejo o mundo ao meu redor”

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