Imaginação
Prosa, poesia e tradução
RONALDO BRESSANE
POR QUE VOCÊ não entra?, diz Hannah. Você sabe que não sei nadar, responde Fabrizio. Não precisa nadar pra ficar aqui, Hannah insinua. Você pode nadar cachorrinho. Eu o faço boiar, é só usar meu nariz. Prometo não fazer cócegas… Obrigado, não estou com vontade, diz Fabrizio, distraindo-se na observação das próprias rugas refletidas no vidro do aquário.
Você tem medo, diz Hannah. Eu sei, li seu diário enquanto você dormia. Você é intrometida, diz Fabrizio, sem mover um músculo da face. E você não deve ter lido de verdade o que escrevi. Não pode ter lido enquanto eu dormia só porque pensa que consegue ler meu pensamento quando estou sonhando. E se eu estivesse pensando em outra coisa enquanto escrevia?, diz Fabrizio. Bom, essa é a prerrogativa dos maus escritores, diz Hannah; se você mentiu pra si mesmo enquanto escrevia, já começou errado. Hum, então você agora virou crítica literária, ironiza Fabrizio.
Só temos você e eu aqui; tenho que ler alguma coisa, não? Já que você tem preguiça de ler pra mim…, diz Hannah. Você não se esforça pra nada. Nem vem nadar comigo… Ah, que saco, por que não fica quieta?, diz Fabrizio, levantando-se -e, pela primeira vez, se dá conta de que soltou a voz, não usou a telepatia para conversar com Hannah.
Ela percebe o ato falho. Puxa, isso realmente o incomoda, diz Hannah. Você não gostou de eu ter lido seu diário. Mas pra que escrever algo que ninguém vai ler? Diário é a forma mais hipócrita de literatura: se pretende isenta e sincera, mas nada pode ser mais pedante ou cheio de autocomplacência -nem a poesia beatnik do século passado, diz Hannah.
Se você tivesse lido o “Diário de Anne Frank”, não falaria essa besteira, diz Fabrizio. Tem aí?, diz Hannah. Se não, baixa na Psico5 pra mim? Sobre o que é? É a história de uma menina judia que se escondeu dos nazistas com a família, diz Fabrizio. Passou um ano até ser denunciada, o diário ficou no esconderijo.
Isso é só desespero, grafomania, o marquês de Sade também tinha isso, escrevia diário com a própria merda na cela lá na Bastilha, diz Hannah. Isso não tem nada a ver com literatura.
E quem disse que o que escrevo tem a ver com literatura?, diz Fabrizio. Você claramente quer deixar um testemunho do que trama e fazer isso com estilo, diz Hannah. Pretende ser objetivo, o que não passa de mentira. Pior, pura vaidade, diz Hannah. O Antonio Maria fez um diário por pouco mais de um ano e nunca publicou, só descobriram quando ele morreu, diz Fabrizio. Decerto a vaidade dele não deixou de atentar para esse detalhe, diz Hannah. Mas isso não é o que mais me espanta no seu diário. E sim essa ideia louca que você escreveu… Sobre manipular esse pobre programador de palavras cruzadas, diz Hannah.
Bobagem, diz Fabrizio. Você ficou irritada porque não consegue escrever; se enciumou com o que escrevi e agora me critica. Você só escreveu porque sabia que eu ia ler, diz Hannah, e só teve a ideia de titerar o pobre Adavilson porque leu a existência dele no meu corpo, durante o Rubi de ontem. Fabrizio sorri: Quer dizer que você se acha minha musa inspiradora?
Então Hannah corcoveia rapidamente, a barbatana dorsal revelando-se por sobre a lâmina do grande tanque e, com um golpe da cauda, gira 180º, mostrando a Fabrizio o seu lado direito -não sem antes oferecer sutilmente uma visão do oviduto oculto sob seu clasper. Ele sempre fica fascinado com essa contradição. Por que não tinham feito Hannah assexuada? Quem foi o sarcástico bioengenheiro da Divisão que teve a cruel ideia de criar um tubarão-tigre hermafrodita para lhe fazer companhia? O mesmo Mengele que lhe havia extraído a memória anterior à sua vida neste apartamento no edifício Copan?
Olha, Hannah, diz Fabrizio, bufando: Só escrevo o diário por um motivo -o tédio. Descobri que, assim como você, se parar não consigo respirar. E escrever é o que me dá um mínimo de calma. Ou melhor, o que me permite não ficar maluco enquanto estamos confinados aqui.
Quanto ao pobre Adavilson, foi uma ideia que tivemos juntos, lembra? Esse programador de palavras cruzadas que trabalha naquela megacorporação de comunicação, a TXT, inventou um jogo em que controla telepaticamente os jogadores de futebol do Campeonato. Se alguém passar a ele a ideia de exportar seu jogo para as colônias chinesas na Lua… Quem sabe em dois anos não temos uma guerrinha entre Xangai e São Paulo. Vou mandar esse tema, junto com nossa predição, para nosso chefinho Mark Sandman.
O que foi exatamente que você leu no meu corpo ontem?, Hannah para, encarando-o com seus olhos prateados. Quando a luz do sol caiu, às cinco e meia da tarde, li nas manchas das suas costas sobre esse homem amargurado que criou um jogo para ser vendido só nos territórios dos Coisos, diz Fabrizio. Ele resgatou o conceito de torcida, extinta quando os jogos começaram a ocorrer em estádios fechados, por causa do terrorismo. Se ele puder fazer com que os Coisos manipulem os jogadores, pode influenciar na loteria esportiva.
É uma ideia genial pra ganhar dinheiro: seu jogo telepático só será vendido aos Coisos -que não usam créditos, só dinheiro vivo. Agora, imagina esse jogo vendido às colônias chinesas. Aí teremos duas torcidas trabalhando mentalmente os jogos do Campeonato. A Divisão vai achar divertido. Quando os chineses descobrirem que o jogo foi criado numa empresa de entretenimento de São Paulo…
E como você vai fazer Adavilssom exportar esse jogo pra Lua?, diz Hannah. Adavilson é um frustrado, diz Fabrizio. No fundo, só quer que a TXT, onde ele trabalha, se dê mal com sua invenção. Vamos enfiar essa ideia na cabeça dele e ele vai achar que pensou sozinho. Entendi, diz Hannah. Assim como acha que a ideia do jogo telepático foi dele, e não algo que sugerimos a ele. Mas não sugerimos, espanta-se Fabrizio. Ah, não?, diz Hannah. E se eu disser que essa ideia está no seu diário de um ano atrás?
Confuso, Fabrizio levanta-se, vai até a mesa, abre o caderno: 25 de abril de 2054. Hoje o Rubi tuniu com a visão de um homem chamado Adavilson Félix Tristão. Ele é um programador de jogos que trabalha na corporação TXT. Um sujeito solitário como eu -com a diferença de que não tem um tubarão-tigre como companhia. Ele tem algumas das características que a Divisão aponta como necessárias para um “agent provocateur”. E se dermos uma ideiazinha a ele? Fabrizio para de ler, horrorizado.
Hannah riu. Agora você lembrou por que faz o diário. Não é por vaidade, para espantar o tédio ou praticar literatura. É para ter a ilusão de que controla essa sua memoriazinha fraca infeliz. Se é assim, você leu na minha mente antes que eu escrevesse, diz Fabrizio. A pior solidão do mundo deve ser essa: um escritor que vive com seu crítico literário, diz, abaixando os olhos. Como escapar?
Vou citar o Mark Sandman: Não há respostas, só escolhas, diz Hannah. Sei por que faz isso; quer inventar uma máquina de memória. Melhor dizendo, uma mnemomáquina, não? Lembrando o instante anterior, quer apreender o instante anterior ao anterior e aí voltar àquele tempo do qual não lembra nada. Aquele tempo em que não era um velhote cheio de manias morando num apartamento enorme com um tubarão. Mas tem uma coisa. O medo de esquecer tira a vontade de lembrar. Você sempre pode viver num doce esquecimento, assim como eu… É tão… Gostoso…
Fabrizio derruba os ombros: Bom, parece que é xeque de novo. Que escolha eu tenho? O sol cai, dando às três fileiras de dentes de Hannah um lindo efeito avermelhado, como frases escritas numa língua antiga. Ela diz: Que tal tirar esse pijama e vir nadar comigo?
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