sábado, 11 de fevereiro de 2012

Retrato das raízes de um país triste

Ensaio clássico de Paulo Prado, publicado em 1928, ganha nova edição

“A visão mais pessimista de nossa história”, segundo Alceu de Amoroso Lima. “Triste no desfecho, mas de narrativa amena e pitoresca, empolgando o leitor, da primeira à ultima página”, no dizer de João Ribeiro. “Um livro que vale mais como obra de arte que de pensamento”, para Agripino Grieco. “Livro pré-freudiano, que repete todas as monstruosidades de julgamento do Ocidente sobre a América descoberta”, na definição de Oswald de Andrade. Estas são algumas das dezenas de opiniões que cercaram a fortuna crítica de Retrato do Brasil: Ensaio Sobre a Tristeza Brasileira, de Paulo Prado. Publicado pela primeira vez em 1928, a contrapelo da maré ufanista daqueles anos, ganhou um numero invulgar de leitores e provocou acirrada polêmica entre os críticos da época. Tudo isto o leitor pode conferir nesta oportuna reedição, primorosamente organizada por Carlos Augusto Calil e fartamente documentada, não apenas pelo acesso que o organizador teve aos arquivos pessoais do autor, mas com um sem-número de notas, depoimentos, resenhas e perfis produzidos nos últimos 80 anos.



Todos foram unânimes em discordar da tese central de que o povo brasileiro é um povo triste e, sobretudo, da equação psicológica através da qual Paulo Prado resumia toda a história brasileira: luxúria + cobiça + romantismo = tristeza. Muitos diziam que o autor confundira as coisas, tomando o sintoma de uma crise de identidade como sendo a própria identidade nacional. Talvez pela clareza do seu estilo ou pelo tom pitoresco da sua argumentação ele acabou por fazer a cabeça de muitos pensadores, então ainda jovens na época, como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Caio Prado Jr. – inaugurando uma modalidade de ensaio sobre a identidade nacional que serviria de modelo para aquela tríade de clássicos da década seguinte. Combatendo tanto o ufanismo estéril quanto os determinismos biológicos e raciais que pesavam na compreensão do Brasil, o Retrato pode ser visto como uma espécie de catalisador daquela ansiedade dos modernistas de 1922 em compreender o País de forma intuitiva e rápida.



Mas também representou a síntese mais notável de um debate virtualmente já estabelecido entre a intelectualidade que se voltava para a busca de uma explicação das origens brasileiras. É o caso do pouco conhecido ensaio Melancolias, de Matheus de Albuquerque – publicado em 1915 – com tema e argumentação semelhantes ao ensaio de Prado, embora literariamente inferior a este. Também não havia nada de especificamente brasileiro naquela equação que apontava a tristeza como signo da nacionalidade, pois tal discurso sintético era parte de um conjunto de padrões de comportamento que há muito a cultura ocidental já vinha atribuindo ao universo selvagem e rural, os dois frequentemente assimilados.



Seja como for é sempre compensador ler, ou reler, o Retrato. Como seu grande mestre e inspirador – o historiador Capistrano de Abreu -, Paulo Prado lembrava, em alguns momentos, aqueles moralistas do século 18, ao estilo de Fontenelle – com apenas uma diferença essencial -, o pensador francês viveu numa época de euforia com o progresso, enquanto o ensaísta brasileiro já respirou o oxigênio mental de uma época de forte descrença com o progresso e com a razão iluminista. Há momentos nos quais ele parece mesmo um moralista demodée em pleno século 20, assistindo a uma profunda crise dos valores e de linguagem pública. Lembra ainda Capistrano também na capacidade de citar o documento na hora certa, encaixando – com mão pesadíssima diga-se – trechos de um viajante ou frases diretas retiradas de autos inquisitoriais, quebrando a amenidade da narrativa. Sua caracterização dos portugueses como “um povo já gafado do germe de decadência quando começou a colonizar o Brasil” faz eco daquela ferina definição de Capistrano que dizia que “O Brasil não passava de um Portugal rarefeito e ampliado”. O mais ilustre padrinho dos modernistas paulistas revela-se ainda implacável contra quaisquer regionalismos. Ao tratar da decadência paulista na época da mineração, arremata: “Foi quando os paulistas se barbarizaram de vez: dispersos, escondidos pelas roças, procurando a solidão no seu amuo característico, vivendo de canjica, pinhão e içá torrado”. Conclui que a cidade de Salvador não passava de “um extravagante caravançarai, pitoresco e tropical”, e ao caracterizar o Rio de Janeiro, não deixa por menos, subscrevendo a extravagante descrição de Luccock de que a cidade era uma “das mais imundas associações de homens debaixo dos céus”.



Quanto à discutível equação de Prado para explicar a psicologia nacional, é possível perceber quanto ela serviu de fonte e inspiração para Sérgio Buarque discorrer sobre o significado da cordialidade na história brasileira no seu Raízes do Brasil, publicado em 1936. Por trás da categoria tristeza estava uma sociedade sem grandes mediações, resultando em formas de convívio nas quais predominam a familiaridade, o personalismo e a afetividade, que acabam exportadas para a vida pública e para as estruturas políticas. Seria apenas pela mobilização de tais categorias sentimentais que não apenas o universo social como também o universo religioso ganhavam sentido: note-se que, no conhecido exemplo de Buarque, o Brasil é o único país no qual Santa Tereza de Lisieux vira “Santa Terezinha”. A diferença era que as categorias sentimentais enfeixadas por Buarque na metáfora do homem cordial não eram apenas negativas – como queria Paulo Prado – mas também positivas e, neste caso, tristeza e melancolia, assim como alegria e fuzarca eram faces da mesma moeda. Afinal, como dizia Millôr Fernandes, “a distância entre o riso e a lágrima é apenas o nariz”.



RETRATO DO BRASIL:



ENSAIO SOBRE A TRISTEZA BRASILEIRA



Autor: Paulo Prado



Editora: Companhia das Letras



(400 págs., R$ 49)



* ELIAS THOMÉ SALIBA É PROFESSOR DE TEORIA DA HISTÓRIA NA USP, AUTOR DE, ENTRE OUTROS, Raízes do Riso (COMPANHIA DAS LETRAS)


Elias Thomé Saliba
 – O Estado de S.Paulo

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