Quando o modernista mário de Andrade colocou nos lábios de Macunaíma o bordão "muita saúva e pouca saúde, os males do Brasil são" , estava estabelecendo o diálogo (intertextualidade) com Lima Barreto. o "Herói sem nenhum caráter", metonimização do povo brasileiro, formado pela miscigenação do branco europeu com o negro africano mais o índio brasileiro, desmistificava a homogeneidade étnico-cultural apregoada pelo convenientemente ingênuo nacionalismo romântico, retomado do ufanismo com que a literatura de informação tingia a terra brasilis, em inconfessável intenção de colonização da terra recém-descoberta(!). Macunaíma, paráfrase antiética de Iracema, e um composto de sensualismo, preguiça e retórica política, antecipa o proverbial "jeitinho brasileiro ' e personifica o oportunismo casuísta que se tornara encalacrado em certas esferas. Policarpo Quaresma, por sua vez, é a cáustica encarnação dos ideais românticos, num personagem-caricatura excessivamente visionário e acrítico. Seu idealismo se choca contra os impedimentos de uma máquina político-administrativa emperrada , e seu pueril patriotismo adentra as raias do picaresco e absurdo. Suas propostas de reforma agrária acabam erodindo numa terra que não confirma o "...em se plantando , tudo dá " , e as formigas que lhe comem as plantações serão , mais tarde, retomadas pelo bordão de Macunaíma.
Entretanto, Lima Barreto, com policarpo Quaresma, tematiza a necessidade de reavaliar o ingênuo nacionalismo romântico.Pelo processo especular que posiciona o autor ante o narrador, este vai assumir uma caracterização irônica, evidenciando-se, assim, o nacionalismo crítico. Desse modo, Lima Barreto cria situações , na esfera da narrativa, se tornam cõmicase, na esfera do referente real, trágicas. na cegueira deste nosso Dom Quixote Tupiniquim, denunciam-se tragédias nacionais: a falta de uma política agrária, a conivência do generalato, os oportunismos eleiçoeiros, os casuísmos políticos, o paternalismo de um Brasil recém-egresso doImpério. essa tragicidade transparece também na proposta de Quaresma, quando defende a adoção do tupi como língua oficial do Brasil. se a proposta de Policarpo nos parece picaresca, não é cõmica a crítica à adesão aos padrões sócio-culturais europeus. a crítica de Barreto consta na própria escolha da linguagem, que, por retratar a língua viva com seus solecismos, lhe granjeou os ataques dos lusófilos.
O mulato Lima Barreto, sintomaticamente, nasceu em 1881, ano em que o também mulato machado de Assis introduzia o realismo em nossas letras, com Memórias póstumas de Brás Cubas, e Aluísio de Azevedo introduzia o naturalismo com , vejam só, O Mulato. Sintomaticamente, ainda faleceu em 1922, ano em que marca o início do Modernismo. Qualificar lima Barreto como pré-moderno, portanto, é mais do que uma simples inserção cronológica; é, na verdade, aquietar a necessidade de enquadramento de um autor que é atemporal, aquele que pôde "inaugurar revolucionariamente a fase do romance moderno no Brasil", conforme Francisco de Assis Barbosa.
Adão de Araújo.
Professor de Literatura Brasileira UFPR.
Fonte:"O Grito " número 3.Janeiro de 1999.CaHis.UFPR
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