domingo, 28 de novembro de 2010

Das Aventuras de Esti

Se a vida tem ou não sentido é uma pergunta ardilosa. Não sei a resposta. Eu a responderia com prazer se pudesse, mas consigo apenas rir dela, disse, com jovialidade, Kornél Esti. Essa vinheta fala da seriedade de Esti, e em seriedade consiste a vida dele.



No fundo ele desfruta do doce horror da confusão de Babel



Esboço búlgaro -Giovanna, ela era a guia búlgara de Kornél Esti. Bem que eu treparia com ela!, foi o que não ocorreu a Esti, mas ocorreu, pois não ocorreu. Giovanna tinha a mesma idade que ele, trabalhava feito uma máquina, “subia” da aldeia toscana próxima para fazer a faxina na casa de Esti.

Aluguei uma casa simples, disse Esti, uma preciosidade da arquitetura italiana, como vocês sabem, proporção, beleza universal feita de alguns pedaços de pedra amontoados, um único quarto amplo, claro, com a promessa sedutora de tardes infinitas e carnais. Giovanna vinha de dois em dois dias, de manhã, na hora de trabalho mais preciosa, não é mesmo? No início eu fugia para o jardim, e passeava, passeava, mas depois acabei ficando, resmungava uma espécie de cumprimento, feito um vigia relutante, um cão pastor imprevisível, e me escondia atrás da escrivaninha. Ao chegar, ela respirava bem fundo e daí em diante falava sem parar -tão depressa, e numa variante local e selvagem do italiano, que eu juro que não entendia uma palavra.

Trata-se de uma diversão infernal, meus amigos, vagar no estrangeiro de maneira que o ruído das bocas nos deixa indiferentes e encaramos abobalhados todos os que se dirigem a nós. Que solidão nobre, amigos, que liberdade e ausência de responsabilidades. De súbito, nos sentimos bebês, tutelados. Desperta em nós uma confiança inexplicável nos adultos, que são mais sábios. Deixamos que falem e façam por nós. Depois, aceitamos tudo, às cegas, ou melhor, de modo inaudito.

A situação não era exemplar, porque a falação de Giovanna não me interessava, embora não fosse um monólogo, mas um diálogo que, de tempos em tempos, com um pigarro ou um murmúrio, eu me via obrigado a incentivar. Nessas horas eu conseguia pescar alguns nomes de cidades. Como se ela dissesse Siena, ou quem sabe siesta?, não sabia por onde ela andava, por onde andávamos, se trocávamos ideias sobre a segurança dos reatores nucleares ou sobre a falta de segurança do sexo oral.

Mas trocávamos. Eu, na maioria das vezes, dizia sim, desatento, porque o sim pode correr para vários lados, pode ser pergunta, pode ser não, pode ser cobrança, espanto, ou pode ser até um sim, com os si eu não arriscava muito, e prosseguia com o meu trabalho. Depois de um si de aparência encorajadora se fez um silêncio assombrado. Se o suor fizesse ruído, somente se ouviria um cheiro adocicado, fruto do trabalho de Giovanna.

Ela ergueu os olhos inquiridores para mim e perguntou insistente: si? Pensei, se eu disse, eu disse, disse e pronto, Petöfi não regateia, ein Mann ein Wort, e assenti com severidade masculina, si. Giovanna, incrédula, abriu a boca, si-i-i? Acho bom que não brinquem comigo, ainda que eu esteja pendurado na beirada de um precipício escuro, desconhecido, disse si, um si que o povo não viu desde Garibaldi, si!, proferi beligerante, como se tivesse reocupado a doce Transilvânia, embora Giovanna não se sensibilizasse com isso. Que fosse o sul do Tirol.

Nessa hora a mulher já estava em cima da escrivaninha, por assim dizer; acompanhando o si beligerante eu fui obrigado a me levantar. De súbito. Nos encaramos. Ela examinou o meu rosto com pesar. Quase sussurrando, perguntou, si? Não tinha mais saída, si, soprei. Uma lágrima surgiu em seus olhos, povero uomo, disse, articulando bem as palavras, povero uomo, e saiu correndo, como um filhote de passarinho assustado.

A minha vida, meus caros, que somente a mulher italiana conhecia, é a vida secreta nascida do doce horror da confusão de Babel, o povero uomo, a infinitude, o desespero, a difícil felicidade do pobre homem.



A boa intenção



Esti desconfiava, tremendamente, havia algum tempo, que talvez tivesse vida eterna. Pare com isso. É longa demais. Ele via a boa intenção da parte do Todo-Poderoso, não desejava ser arrogante, mas não tinha prazer em participar desse projeto. Debaixo da terra, como os vermes, era uma vez, é o certo, é o digno, tem feição humana, não queria entrar em detalhes. Não gostaria de modo algum de parecer ingrato, como se tagarelasse com leviandade. Sentia que sua argumentação era convincente apenas em parte.

Depois, o resultado ambivalente de um exame realizado por conta de uma sequência de episódios de falta de ar o tranquilizou em relação ao assunto. Na verdade, o tranquilizou somente em parte. Sua vida passou a consistir nessas meias palavras.



Observação: Kornél Esti, o herói dos romances de Dezsö Kosztolányi (1885-1936), ressuscitou de novo

Fonte:Folha de São Paulo/Ilustríssima.Domingo 28/11/10.

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