A relação mãe-menino-prostituta reata as ligações entre a “civilização” e a Vorwelt
Os temas do corpo, do amor, do erotismo, das relações de gênero e do papel das prostitutas, na obra de Benjamin, já suscitaram alguns estudos1. São temas que, de fato, percorrem sua obra desde os primeiros escritos, quando o Benjamin ainda estudante e militante em uma das facções (a mais radical, dizia-se!) do Movimento de Juventude, defendia a necessidade de uma “cultura erótica” e a afirmação de uma “eticidade da prostituta”. Para Sigrid Weigel haveria três diferentes momentos – que se aproximam, articulando-se, mas também que se distanciam – na obra de Benjamin a respeito dessa questão: o inicial, na juventude, sob o signo da dualidade entre criação e procriação, na qual a prostituta, por recusar-se ao “destino” da mulher como esposa e mãe, destrói a “fachada” das belas construções burguesas; um segundo momento, no qual ele situa os relatos da Infância berlinense, onde a prostituta, em contraste com a figura da mãe, abre o caminho para a constituição de um saber sobre o Outro, em especial sobre o próprio corpo (esse Outro que nos é o mais próximo!) e um terceiro momento, no qual esse saber sobre si mesmo, mediado pela prostituta, se alarga em direção à cultura, tal como nos mostra um dos cadernos do Trabalho das passagens.
Em um dos relatos que compõem a Infância berlinense por volta de 1900, intitulado “Mendigos e prostitutas”, Benjamin nos conta seus passeios na cidade, com a mãe e, ao mesmo tempo, sua resistência ao poder materno, andando sempre alguns passos atrás dela. Assim ele podia experimentar sua fascinação pelas prostitutas com quem cruzava eventualmente no caminho. A cidade, “labiríntica”, abria suas portas ao “impulso sexual” e esta irrupção do desejo se contrapunha à Bildung que moldava a subjetividade do menino burguês. Desse modo, a irresistível atração para dirigir-se a uma prostituta, na rua, parecia-lhe um ato de abjuração: contra a própria mãe e a classe social à qual ambos pertenciam.
Retomo aqui os relatos da Infância berlinense relativos ao tema da sexualidade e do corpo – além de “Mendigos e prostitutas”, “O despertar do sexo” e “Notícia de uma morte” – para reler a tríade mãe-menino-prostituta, a partir da obra do jurista suíço e estudioso da antiguidade clássica, Johann Jakob Bachofen. Desde o início de sua imigração para a França, em 1933, Bachofen fora objeto de intensa leitura por parte de Benjamin, que escreveu, em 1934, um artigo de apresentação da obra de Bachofen ao público francês, em princípio a pedido da Nouvelle Revue Française, mas que nunca foi publicado. No texto2, ele procede rigorosamente de acordo com seu “método” de leitura, onde não apenas lê a obra a ser interpretada, mas também o que foi feito dela, as suas diferentes apropriações, que demarcam sua “atualidade”. E é o destino de O matriarcado, a obraprima de Bachofen, como o próprio Benjamin afirma, que está em jogo nesse artigo.
Nessa obra, Bachofen estuda a transformação do matriarcado primitivo no regime patriarcal e monogâmico. A partir de sua pesquisa, conclui pela existência de uma organização familiar diferente daquela que reina no Ocidente desde a antiguidade clássica. As instituições “superiores” de nossa cultura tais como a moral, o direito e o casamento monogâmico têm suas raízes em uma pré-história sombria e violenta, em um mundo primitivo, um “mundo antes do mundo”, uma Vorwelt . O ponto de partida de Bachofen é, em princípio, bastante “feminista”: as crises mais profundas e mais desconhecidas da civilização dizem respeito aos períodos de transformação da condição da mulher. Entretanto, retomando as idéias “evolutivas”, tão comuns à época, ele vai mostrar que entre o estado primitivo, de desordem e promiscuidade impostas pela brutalidade masculina, uma promiscuidade geral que deixa suas marcas na “constituição hetaírica” – de Hetaira, o nome grego para as “cortesãs” – e a forma final da evolução, a sociedade patriarcal, houve um regime diferente, curioso, que ele denominou de Mutterrecht, literalmente, um regime dominado pelo “direito da mãe”: aqui, a mãe transmite seu nome, seu direito e sua propriedade, decide acerca da condição das crianças e, como uma rainha, exerce a soberania, chegando, inclusive, a excluir os homens das guerras, formando exércitos sanguinários e cruéis e fundando uma verdadeira “ginecocracia”. Mas, se o ponto de partida é “feminista”, a conclusão de Bachofen não é: esse regime, o do “direito da mãe” é, de algum modo, contra a natureza e, a ele, deve-se seguir a verdadeira ordem, a ordem patriarcal, que estabelece, no estado normal, o domínio do nous, da “inteligência”, e no direito, a predominância do pai.
Lendo o artigo de Carl Bernoulli sobre Bachofen, Benjamin retoma a idéia, “particularmente feliz”, diz ele, de que reina um “claro-escuro” nas pesquisas de Bachofen. Essa expressão torna-se uma espécie de “fio de Ariadne”, por meio do qual podemos movimentar-nos, com alguma segurança, no interior desse texto de Benjamin. “Claro-escuro” define uma zona intermediária, um “lusco-fusco”, um estado de transição, uma “passagem” ou ainda um “limiar” (Schwelle), conceito-chave nos últimos textos de Benjamin. A própria obra de Bachofen está em um “limiar”, entre o declínio do romantismo e os primeiros movimentos do positivismo. Mas esse “claroescuro”, continua Benjamin, é muito mais aquele que reina na caverna platônica, pois, dependendo da perspectiva, pode dirigir o leitor aos contornos ainda mal definidos das idéias ou fazê-lo naufragar, de vez, nas sombras enganosas. Daí a importância do estudo da “recepção” de Bachofen, para enfatizar também sua apropriação pela esquerda – as de Engels, Paul Lafargue e Elisée Reclus – aliada na luta contra as leituras “místicas” de um Alfred Schuler ou as “nazistas”, de um Alfred Bäumler – mas sem cair na armadilha de ler a Vorwelt de Bachofen como uma imagem idílica do “comunismo primitivo”.
Em meio às leituras “místicas”, “esotéricas”, Benjamin destaca, entretanto, a de um velho conhecido, Ludwig Klages, que, segundo ele, utiliza Bachofen como este jamais sonhou. No Eros cosmogônico, Klages transforma a Vorwelt, em um mundo “citônico”, dominado por forças infernais. Caídas no esquecimento, essas forças retornam por meio das “substâncias míticas” e constituem, para Klages, as Urbilder, as “imagens originárias” do mundo: “as imagens originárias são – escreve Benjamin – a aparição das almas do passado”.
A prostituta que se oferece, na rua, aos olhos desejosos do menino, aparecerá no Trabalho das passagens, como uma dessas Urbilder, na concisa defi nição de Benjamin – “a prostituta é a guardiã daquilo que passou” – que nos lembra um tempo anterior aos imperativos de qualquer ordem, seja o da mãe, seja o do pai. O menino, dividido entre a prostituta e a mãe, atualiza a força dessas “imagens originárias”, em uma espécie de vertigem, em que o retorno do recalcado se faz à custa de um estado de auto-esquecimento, em uma embriaguez que suspende a eficácia das normas (em Bachofen já encontramos a distinção entre apolíneo e dionisíaco, da qual Nietzsche se utilizará). Em “O despertar do sexo”, o menino, que deveria encontrar sua mãe na sinagoga para a comemoração do Ano Novo judaico, “esquece” de seu compromisso para entregar-se, pela primeira vez, à experiência sexual, com uma prostituta. Em “Notícia de uma morte” descobre, muitos anos depois, que sua atração pelas prostitutas poderia levá-lo à morte, pela sífilis. Em “Mendigos e prostitutas”, ele é derrotado na sua luta contra o desejo proibido e, como um ladrão ou um marginal, retorna sozinho às ruas, à noite. Os resíduos desse “mundo primitivo” – que serão decisivos na interpretação que Benjamin fez de Kafka – continuam agindo permanentemente em meio à “civilização”.
A relação mãe-menino-prostituta reata, assim, as ligações conflituosas entre a “civilização” e a Vorwelt. O poder da mãe, judia e burguesa, desafia algumas normas importantes, pois enquanto o pai, ortodoxo, cumpre os ritos religiosos tradicionais, a mãe, liberal, freqüenta a sinagoga reformada. A presença da mãe, intensa e freqüente em Infância berlinense, nos lembra o “direito da mãe”, enquanto o da prostituta, o “estado hetaírico”, de “limiar”. Não por acaso, os lugares preferidos das prostitutas, na cidade, são emblemas do “limiar”: portas, esquinas, calçadas, passagens, shoppings-centers. A Vorwelt, perigosa, fascinante, embriagadora, nos acena por meio da prostituta, com a transitoriedade, a fugacidade, com cortes, cesuras e descontinuidades, nas quais sedução e perigo, vida e morte se encontram e se entrecruzam. Desse confronto entre as “ondas do desejo” (a metáfora é de Benjamin em “O despertar do sexo”), o sujeito só pode subsistir definitivamente cindido e fraturado, após um embate, como nos lembra “Mendigos e prostitutas”, do qual não se sai “com as mãos limpas”.
Ernani Chaves
é professor do Departamento de Filosofi a da Universidade Federal do Pará. Autor de No limiar do moderno: Estudos sobre Friedrich Nietzsche e Walter Benjamin. Belém, Paka-Tatu, 2003
NOTAS
(1) Ver em especial, Sigrid Weigel. Entstellte Ähnlichkeit. Walter Benjamins theoretische Schreibweise. Frankfurt: Fischer, 1997.
(2) BENJAMIN, Walter. “Johann Jakob Bachofen”, in Gesammelte Schriften. Frankfurt: Suhrkamp, 1992, Volume II-1, p. 219-233.
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