DAMIÁN TABAROVSKY
colaboração para a Folha de Buenos Aires
JULIO CORTÁZAR É O GRANDE ESCRITOR ADOLESCENTE da literatura argentina. Isso não deve ser lido como um defeito, mas, pelo contrário, como parte de alguns atributos que o tornam irremediavelmente original.
Adolescente em pelo menos três sentidos. Primeiro, por seu aspecto, seu porte, seu estilo. Por alguma razão misteriosa, Cortázar sempre pareceu mais jovem do que realmente era. Nascido em 1914, nos anos 60 -durante a explosão do boom de literatura latino-americana- já era um senhor maduro; não obstante, partilhava cartel (e marketing) com escritores dez ou quinze anos mais novos: García Márquez nasceu em 1927, Carlos Fuentes, em 1928, e Vargas Llosa, ainda mais tarde, em 1936.
E mesmo assim nas fotos ele sempre aparece fresco, viçoso, alto, esbelto, com aquele jeito de intelectual parisiense que fazia parte de seu halo. Lembro agora de uma foto, certamente a mais famosa de Cortázar, tirada em 1967 na Rue de Savoie, em Paris, pela fotógrafa argentina Sara Facio: é um primeiro plano de seu rosto, com um cigarro apagado na boca, elegante, com o cenho levemente franzido. Tinha 53 anos, mas parecia ter bem menos.
LOOK É que a adolescência em Cortázar também é uma questão de atitude: seu “look” se conjuga com um esquerdismo romântico, de viagem em viagem (de Cuba à Nicarágua, passando por Maio de 68), com um frescor ideológico carente de rigor teórico e, ainda mais, de dureza militante, mas que funcionava com um ímã, como uma apresentação à rebeldia literária para as jovens gerações em busca de um mestre.
Adolescente também, e principalmente, é sua obra. Em seu “Diccionario de Autores Latinoamericanos”, Cesar Aira escreve: “Em 1951, ano de sua partida para a França, apareceu ‘Bestiário’, livro de contos que, pelo estilo, procedimentos, temática e qualidade, poderia ser intercambiado com o último que escreveu, 30 anos depois. Não houve maturação visível em Cortázar”.
GOMBROWICZ A literatura argentina conhece outro caso de quem fez uma arte de não amadurecer: Witold Gombrowicz (1904-69). Repassemos brevemente sua história. Ancorado por acaso em Buenos Aires em 1939 (os nazistas tinham acabado de invadir sua Polônia natal), residiria na Argentina por 24 anos, onde escreveu vários de seus romances-chave (daí a piada, acho que de Ricardo Piglia, de dizer que “Gombrowicz é o grande escritor argentino”).
A tradução de “Ferdydurke” para o espanhol é um dos maiores mitos literários argentinos, senão o maior: reunidos no bar Rex, em Buenos Aires, Gombrowicz ia traduzindo, frase por frase, do polonês original para um espanhol calamitoso (jamais conseguiu aprender bem o idioma), e um grupo de jovens escritores, entre eles Adolfo de Objeta (o filho de Macedonio Fernández, mestre de Borges) e Virgilio Piñera (o grande escritor cubano) tentavam compreender e dar “estilo” às frases desconexas do autor até traduzir o romance para um espanhol inverossímil.
Pois bem, Gombrowicz baseia toda a sua obra em sua teoria da imaturidade. Nele, a imaturidade está ligada à ideia da forma, à recusa de toda metafísica, de todo essencialismo, tanto literário como político. A imaturidade em Gombrowicz é um modo de não pertencer ao mundo, de não deixar-se pegar por ele, de pôr o sentido em suspenso, de suspeitar das ideias simples, de deixar as coisas mais complexas.
Nada disso ocorre em Cortázar. Se a sua literatura é imatura ou, melhor dizendo, adolescente, é, muito pelo contrário, porque para ele tudo fica demasiado fácil, binário, transparente, inteligível. A escrita de Cortázar funciona por empatia, como os adolescentes. Forma bandos, grupos (Os Cronópios, As Famas), conta histórias reconhecíveis, permite que nos sintamos identificados (que garota dos anos 60 não queria ser como A Maga, personagem de “O Jogo da Amarelinha”?). Querer identificar-se com Cortázar é parte do encanto da cultura argentina.
PERENE JUVENTUDE Chegamos agora à terceira razão, talvez a mais importante, a mais enigmática, a mais sexual: o que faz de Cortázar um adolescente é que ele é o grande escritor argentino lido por adolescentes. Volto ao dicionário de Aira: “Um ar de perene juventude banha sua obra, indiscutível favorita entre os jovens, leitura de iniciação e descoberta da literatura”.
Todo escritor, intelectual ou simplesmente leitor argentino, em sua adolescência, leu e amou loucamente Cortázar. Se alguma vez encontrar um leitor argentino que diga o contrário, não acredite: é mentira. Cortázar é para todos nós uma fonte inesgotável de alegria, de felicidade: nos lembra quando éramos jovens, quando tínhamos o futuro adiante, o mundo a nossos pés.
E nos lembra perguntas enigmáticas, como esta: “Onde o destino põe a obra dos jovens escritores?”. Se existe algo que Cortázar jamais pensou foi em converter-se no grande escritor para adolescentes, o grande escritor de iniciação (ele se pensava competindo com Borges, dialogando com Gide, herdando de Breton). E, mesmo assim, seus livros, seus romances e contos, sua foto com o cigarro apagado são o ritual de iniciação à leitura (à leitura verdadeira, à emoção, ao pensamento) de milhares de jovens a cada ano.
Cortázar tem um duplo enigma, o enigma da passagem do tempo: nós envelhecemos, mas ele, não. Ele sempre é brisa de liberdade, de esperança, de alegria, como é a própria juventude.
DIVULGAÇÃO Se a literatura de Cortázar cumpre essa função de iniciação, é porque sua obra é um imenso mecanismo de divulgação literária e cultural. Em seus livros aparece um conjunto de nomes próprios, que muitos conheceram pela primeira vez graças a ele: de Marcel Duchamp à patafísica, de Rimbaud a Lezama Lima, do free jazz a Raymond Roussel, a escrita de Cortázar funciona como uma batedeira, um liquidificador, um multiprocessador onde, de um lado, entram essas matérias-primas (os ecos da boemia e da vanguarda francesa!) e, do outro, sai um produto que conserva citações e referências àquela vanguarda, mas apresentados agora de modo amigável, ameno, sem nada que dificulte a leitura.
Por todos os lados, esse mecanismo funciona, não apenas em sua política de citações de nomes próprios (explícita em livros como “A Volta ao Dia em 80 Mundos”), mas, sobretudo, em seus contos, em suas narrativas, em seus romances: “Histórias de Cronópios e de Famas” é uma reescrita gentil do imaginário surrealista, “O Jogo da Amarelinha” retoma de maneira amável as grandes experimentações do romance de vanguarda do começo do século 20.
AMIGÁVEL Como todo grande mestre de adolescentes, Cortázar tem um componente tranquilizante: sua obra vem nos dizer que a vanguarda não implica um corte radical, uma quebra estrutural, não gera uma irremediável sensação de solidão, mas, pelo contrário, mostra que é possível ser vanguardista e amigável ao mesmo tempo. Cortázar é como um tio legal e meio maluco da literatura argentina.
E depois, irremediavelmente, vem o momento trágico. Acontece com todos nós, e tudo bem que seja assim: nós o abandonamos. Graças a ele, conhecemos Raymond Roussel. Mas, depois de ler Roussel, não podemos voltar a Cortázar. Porque depois pulamos para Foucault (autor de um livro formidável sobre Roussel) e dele para Robbe-Grillet, e depois para Duchamp e Cage, e à mais radical vanguarda latino-americana, e então os mecanismos de divulgação cortazarianos já não nos divertem mais. Pelo contrário, nos parecem triviais. É um momento penoso: significa que deixamos a adolescência para trás, que já não somos mais jovens.
E quando ninguém esperava nada novo de Cortázar, no ano passado saiu na Argentina o livro que agora acaba de ser traduzido para o português: “Papéis Inesperados” (os livros de Cortazar são publicados no Brasil pela ed. Civilização Brasileira). Um conjunto de textos nunca antes publicados, como algumas chaves de leitura muito interessantes (como o discurso para professores, de 1939, no qual temos acesso a um Cortázar bem sério, ou o belíssimo texto sobre o funcionamento do metrô).
Quando saiu, o volume foi apresentado na Feira do Livro de Buenos Aires, na sala maior, totalmente lotada: 1.200 pessoas, na maioria menores de 30 anos, curiosos pela aparição de uma novidade de seu autor favorito, morto faz muito tempo (1984).
Mas sempre jovem, é claro.
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