segunda-feira, 12 de julho de 2010

A Fuga de Pulcinella

Pulcinella era a marionete mais inquieta de todo o velho teatro. Tinha sempre que protestar, seja porque no momento do espetáculo preferira passear, seja porque seu manipulador concedera-lhe uma parte cômica, enquanto ele preferira uma dramática.

-Qualquer dia destes – dizia em segredo a Arlecchino – corto a corda*! E assim fez, mas não durante o dia. Uma noite, ao conseguir tomar posse de uma tesoura esquecida pelo manipulador das marionetes, cortou de um topo ao outro os fios que lhe prendiam a cabeça, as mãos e os pés e propôs a Arlecchino:

-Vem comigo.

Só que Arlecchino não queria saber de separar-se de Colombina e nem Pulcinella tinha a intenção de ir atrás daquela manhosa, que no teatro tinha-lhe pregado cem mil peças.

-Irei sozinho! – decide. Lançou-se corajosamente rua a fora, pernas para que te quero!

“Que beleza – pensava ao correr – não sentir mais os puxões daqueles malditos fios em lugar nenhum. Que beleza meter o pé bem aonde se deseja”.

O mundo, para uma marionete solitária, é grande e terrível e habitado (especialmente à noite) por gatos ferozes, prontos a confundir qualquer coisa que fuja como um rato, a qual se dá a caça. Pulcinella conseguiu convencer os gatos, que se metiam com um bom artista, e conto após conto, refugiou-se em um jardim, encostou-se em um pequeno muro e ali adormeceu.

Acordou com o nascer do sol e tinha fome. Porém, ao seu redor, até onde a vista alcançava, não havia mais do que cravos, tulipas, zínias e hortênsias.

-Paciência – falava para si Pulcinella e, ao colher um cravo, começou a mastigar-lhe as pétalas com uma certa indiferença. Não era como comer uma bisteca grelhada ou um filé de peixe pérsico: as flores têm muito perfume e pouco sabor. Entretanto, para Pulcinella aquilo parecia o sabor da liberdade e, na segunda bocada, estava seguro de nunca ter provado comida mais deliciosa. Decidiu permanecer para sempre naquele jardim e assim o fez. Dormia sob uma grande magnólia, cujas duras folhas não temiam nem mesmo as fortes chuvas, e se nutria das flores: hoje um cravo, amanhã uma rosa. Pulcinella sonhava com montanhas de espaguetes e planícies de mussarelas, mas não se rendia. Tornava-se seco, seco, mas tão perfumado, que a todo instante abelhas pousavam em seu corpo para sugar-lhe o néctar e logo afastavam-se frustradas, pois não conseguiam afundar o ferrão na sua cabeça de madeira.

Veio o inverno. O jardim, agora sem flores, esperava a primeira nevasca e a pobre marionete não tinha mais nada para comer. Sem dedos que pudessem recomeçar a viagem: as suas pobres pernas de madeira não suportariam levá-lo para longe.

“Paciência, – falava para si Pulcinella – morrerei aqui. Não é um lugar feio para se morrer. Além do mais, morrerei livre: ninguém poderá prender um fio à minha cabeça, para me fazer dizer sim ou não.”

A primeira nevasca o sepultou abaixo de uma mórbida coberta branca.

Na primavera, naquele exato lugar, nasceu um cravo. Soterrado, calmo e feliz, Pulcinella pensava: “ Eis que acima da minha cabeça cresceu uma flor. Existe alguém mais feliz do que eu?”.

Porém, não estava morto, porque as marionetes de madeira não podem morrer. Ainda continua soterrado, só que ninguém sabe disto. Se vocês pretendem encontrá-lo, não amarrem nenhum fio em sua cabeça: aos reis e rainhas do teatro, este fio não incomoda, mas a ele, pode fazê-lo sofrer.



*cortar a corda: `tagliare la corda` (no original) é uma expressão idiomática que significa “ir-se embora”. No texto original é utilizada em forma de trocadilho, devido ao fato de Pulcinella ser uma marionete (consequentemente, presa por cordas).

Por Gianni Rodari


Bruna G. Galvão (tradução)

BIOGRAFIA: Gianni Rodari (1920-1980), jornalista e escritor italiano que se destacou como autor de histórias infantis. Dentre suas publicações está Favole al Telefono (1962), onde se encontra a fábula aqui traduzida

Fonte– Cronópios

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