Vivia pelos cantos das festas. Eu não era solitário. Fumante, apenas. Obrigado a manter distância dos outros – eu e o pedaço de vida que me cabia entre os dedos – recostado na janela ou do lado de fora do salão, onde nenhum idiota poderia tossir e reclamar. Em tempos de valorização da saúde, quando os atores do cinema cospem mais sangue e menos fumaça, você se torna um alvo de uma geração de devoradores de batata e coca-cola.
Foi em uma festa para crianças, o sobrinho soprando velinhas. Vi aquelas velas no bolo – dez ao todo – as faíscas estourando. Tive vontade de voltar no tempo, só para me masturbar pela primeira vez. O início é como desenterrar um vulcão em erupção, tornar-se ativo. Você descobre o sentido da vida, renova a esperança no ser humano e percebe, finalmente, a maior utilidade de um polegar opositor.
Pensando bem, não pensei nisso naquela noite, mas agora, porque me lembrei de Eliana. Meu próximo contato com ela só ocorrerá por intermédio da mão direita, daí a nostalgia. Todo prazer é uma espécie de alívio. E eu quero muito aliviar-me daquela víbora, deletar as cenas proibidas para menores de dezoito, inclusive o cigarro interposto entre unhas vermelhas.
Voltemos para a festa. Mas não vou mentir para você. Essa merda nos levará a Eliana e talvez seja por isso, somente por isso, que ainda lembro-me dos detalhes. O estopim da vela, na verdade, me deu uma vontade desgraçada de acender um cigarro. Saí andando para trás e batendo palmas, até dar meia volta, mover a porta do salão, ir até a escada do prédio, sentar no degrau mais alto.
Um pouco de nicotina no ar e temos Eliana na história, às minhas costas. Chegou com andar de formiga: estava de salto e não a notei. Vestido vermelho, curvas impossíveis à direita e à esquerda, mulata. Ergui o cigarro para avisar, “Território enfumaçado, volte.” E aí ela pediu, meio rouca, um isqueiro.
O fogo do isqueiro é um tipo de hóstia entre fumantes. A brasa se multiplica para os irmãos. Compartilhamos o vício, e isso é uma virtude, meu caro. Duvida? Pergunte a um cachaceiro se ele é capaz de dividir o resto da pinga no copo, a um cervejeiro se doaria um copo para um desconhecido e, depois, observe os fumantes, veja como dão fogo e cigarros para qualquer outra chaminé-humana que apareça.
A conversa com ela foi rápida, lapso de dois cigarros. Daí ela me ofereceu seu fogo. Houve labaredas nunca antes vistas na cama do meu quarto. Não tinha frescura com ela, outra virtude das fumantes, e arriscamos metade do Kama Sutra naquela madrugada. Quando ela tremeu, chacoalhando a cama, também gozei. Por isso eu logo percebi: existiria vida após a transa.
Eliana era meio contraditória, sabe? Professora de academia, amante de esportes radicais. Começou a fumar vendo na tevê os jovens que flutuavam nas motos, subjugavam montanhas e carregavam sempre a vara mágica de tabaco. Por que não parava? Não queria uma vida longa. Queria morrer antes de estar morta.
Eu achava graça, apalpava a cintura dela. Cochichava algumas coisas nas bordas do ouvido para ela saber o quanto estava viva.
Acompanhei a mulata em algumas aventuras. A pior delas foi a queda livre, tão comum em sonho, do alto do Viaduto das Almas. O elástico nos pés, enxerguei as pedras do rio como esses insetos que crescem e se apequenam nos movimentos de uma lupa. “Quer dizer que você gosta de cutucar a morte?” Eliana era cheia das antíteses, a danada, “Cutucar a morte é viver, meu amor”.
Neste mesmo dia do salto, Eliana quis saber o valor da vida para mim. Pensei em muita coisa para enganar o próprio pensamento, para não dizer, “Gata, viver é ter uma mulher linda e inteligente te chamando de amor.” Mas eu ia entregar de bandeja a alma, assustá-la, daí mastiguei o silêncio enquanto ela esperava, insistente, uma resposta.
Foi um relacionamento muito diferente dos anteriores. Não nos falávamos por meios virtuais, quase não usávamos telefone. Todas as noites após o trabalho íamos parar no meu apartamento ou no dela ou num motel. Aos fins de semana, partíamos para alguma loucura no meio do mato. Experimentei a Asa Delta, a metáfora perfeita de namorar Eliana: estar suspenso do mínimo grão de areia do real.
Não tive compaixão dos livros. Nem do Machado. Vivia um poema árcade, com a minha própria Marília, e eu poderia dedicá-lo à primeira traça que comeu o Brás Cubas da estante.
Foi preciso vencer o medo de altura. Se consegui, temi menos a altura que a fossa. O alpinismo, hesitei um pouco antes de encarar. A serra escolhida pela mulata não era tão alta, ainda bem. Nada foi tão bom quanto chegar lá em cima, montar uma barraca e fazer sexo. Eu por cima, ela por baixo, lá fora o vento latindo. Não esperava uma coisa: a vontade de tirar a roupa atrapalhou-me de montar direito a barraca; e o vento levou a lona que nos cobria. Quase me amoleci, temendo a chegada de outras pessoas, mas eu penetrava a própria onipotência. Ela sorria, os gemidos exercendo atração magnética sobre meus pelos, os fios dos cabelos se embolando como cobras Naja. Não havia como interromper aquilo para recuperarmos a barraca. Não havia como parar se tocasse o telefone, se aparecesse alguém, se chovesse meteoros. A melhor das transas não foi sucedida de um cigarro. Ao menos isso o vento conseguiu avacalhar.
No outro dia eu acordei pensando em colocar um anel dourado na mãozinha dela. Decorar frases bonitinhas para declamar. Ajoelhar se fosse preciso. Veja bem, eu nem conhecia ainda a família da moça. Mas nascemos um para o outro e nos dávamos muito bem na cama. As unhas e dentes amarelados, o gosto do cigarro na boca, nada disso fazia diferença entre dois fumantes apaixonados.
Quis fazer uma surpresa para a mulata. Nada de anel. Melhor deixar essa imagem nas nuvens ainda, uma aliança íntima entre mim e o tempo. Passei para o terreno das flores e das mensagens de amor. Despertar, quem sabe, um romantismo apagado no primeiro cigarro aceso. Passei na floricultura do centro da cidade. Escolhi orquídeas, porque são belas e não morrem facilmente.
Toquei a campainha. Ela demorou demais para atender. Quando veio, não podia imaginar que, nos três meses de convívio, eu aprendera metade do que falavam os seus olhos. E não dava para negar, era olhar de fera no cio em pleno ato. Bandida. Joguei as flores nos braços dela e parti para o quarto. Ela ligeira, atrás, “Onde você vai, meu bem?”, e eu apertando os passos, “volte aqui, amor”, e eu cada vez mais puto e apressado.
Abri a porta do quarto. Agachei, olhei debaixo da cama, vazia, puxei as cortinas, ninguém, abri a porta do armário, vai que o cara era adepto a clichês? Bingo. Lá estava ela. Ela! Seios à mostra e fio dental azul-piscina com bolinhas brancas.
A mulher disse um oi. Tornei a fechar a porta do guarda-roupa. “Eu ia te contar”. Caminhei de volta à sala. Tomei o vaso com a orquídea na mão direita e, num impulso de handebol, espatifei tudo na parede. Terra e flores roxas para todo lado. A outra chegou correndo, os peitos balançando, “Encoste nela e chamo a polícia”.
“Não vou encostar em ninguém, sua puta.” Eliana pediu para a mulher voltar para o quarto. Depois foi ao oratório, puxou um cigarro do porta-canetas. Ofereceu-me um. Recusei.
O barulho da louça explodindo resgatou-me a calma. Pedi desculpas. Ela, manuseando o cigarro como se fosse batuta, ensaiava no ar uma melodia fúnebre. “Não foi nada”.
Falei que ela devia ter contado sobre a sua bissexualidade, sem problemas. E, apesar da cena ter me deixado puto, essa aventura não mudaria nosso namoro, pois tudo estava muito bom.
Ela riu, riu e tossiu, riu por entre os tragos.
“Quem disse que estamos namorando?”
Não sei quanto tempo ficamos no pause, ela esperando uma reação, eu tentando assimilar a pergunta. Acabei protestando como um paspalho. Por que então ela dizia me amar?
Sem mexer uma ruga no rosto, fez um discurso sobre o sentimento. “O amor, hoje, querido, é rápido e intenso.” E fez alguns espirais de fumaça para exemplificar. As coisas na vida dela surgiam e sumiam muito rápido. Mas cada partícula perdida se enterrava viva numa fresta da memória. E confessou, amou-me, mas o sentimento já estava no fim. Duraria mais dois dias ou coisa parecida.
A pouco de deixar Eliana, olhei para as mãos dela. O cigarro no meio das unhas vermelhas já era quase uma guimba. Um pedaço miserável de veneno e de vida despejando cinzas pelo chão. Não era possível que ela não sentisse a brasa da outra ponta se aproximando… talvez fosse a obsessão de ir até o limite. Logo ela recorreria a outro cigarro, antes ou depois de lamber a vadia que a esperava.
Saí sem dizer adeus, a terra na sola do sapato, deixei duas ou três pegadas nas escadas. O fim do relacionamento só foi bom para a minha mãe: parei de fumar. Depois de três meses de muito sexo, estou convicto, sou um ex-fumante. Detesto cigarros e amores que queimam. Mas não sei por que, talvez pela força do hábito, continuo a buscar os cantos das festas de aniversário.
Por Augusto Marques
Fonte:Cronópios
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Augusto Marques (24 anos) estuda Publicidade, é contista, músico e fumante. Mora em Ibirité, no interior de Minas Gerais. É brasileiro e desiste sempre. Mas depois, por essas razões ocultas, torna a acreditar. E-mail: augusmarques@yahoo.com.br
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