Georges Bataille é um autor que tem seus estudos reverberando mais no meio acadêmico do que sua literatura nas livrarias; e quando chega a elas, acaba recebendo o rótulo incompleto de “literatura erótica”. Há quem defenda que até essa denominação seja errônea: uma leitura superficial sobre um montador de histórias vastamente embasado em excelentes teorias próprias e narrador sagaz.
Bataille teve a chance de ver em vida três edições de História do Olho, todas sob o pseudônimo de Lord Auch. A primeira em 1928, a terceira em 1952. Mesmo esta última não passou da tiragem de 500 exemplares, mostrando que sua obra seria mais bem aproveitada por gerações futuras.
A grande magia já acontece no título: História do Olho. Não se trata de um olho, mas de vários olhos que estão interligados numa mesma história – mesmo que não participem dela, ou mesmo até mortos. É esse deleite de Bataille em lançar luz sobre o que está esquecido pela narrativa, apontando vida em todas as direções, outras possíveis histórias sendo escritas ao mesmo tempo.
O primeiro capítulo, por exemplo: «O olho do gato». No início, a personagem Simone senta-se nua em um prato de leite levando ao orgasmo o protagonista que observa tudo a certa distância. Sabemos que o prato de leite no corredor era deixado para o gato, mas o animal não aparece na cena. Quer dizer: com o título criado pelo autor, é possível sentir a presença do gato no mesmo recinto, mesmo que nenhuma palavra na narrativa tenha se preocupado em designar isso. E o livro vai se sucedendo desta maneira: a exploração do erotismo através desses personagens, utilizando-se de várias experiências – não somente sentindo, mas contextualizando, compreendendo, associando. Num fluxo narrativo claro e elegante, mesmo que palavrões apareçam constantemente no texto para identificar “porra”, “merda” ou “cu”. O contexto abarca uma suavidade e valorização das sensações físicas para a qual seria impossível o uso de uma linguagem que camuflasse essa vivência mais básica. E a nudez da linguagem torna-se extremamente original e delicada, em oposição à sexualidade quase etérea de Anaïs Nin ou o bruto descortinar de Sade – já que o nu em Sade é a humilhação; em Bataille, a liberdade. «O ser absurdo possui todos os direitos», nos afirma o autor no decorrer do livro.
O prefácio a esta edição, de Eliane Robert Moraes, deixa claro que esta curta narrativa tem muito de autobiográfico e que foi feita por recomendação do psicanalista de Bataille, para que seu paciente expelisse no papel fantasias sexuais e obsessões de infância. O término desta narrativa gerou no autor um nítido tipo de cura, onde suas lembranças só puderam tomar vida deformadas, irreconhecíveis; e assim se instaura uma obra de ficção.
Aí pode entender-se quando Bataille afirma no livro O Erotismo que «o sentido último do erotismo é a morte». O erotismo, embora se oponha à reprodução, é seu fundamento. A reprodução envolve a relação sexual entre dois seres descontínuos que trazem em si a continuidade. Por si só, o ser humano possui o que Bataille chama de «nostalgia da continuidade perdida». Essa nostalgia é a base das três formas de erotismo que defende: erotismo dos corpos, erotismo dos corações e erotismo sagrado.
Nessas três formas de experiência erótica existe a busca pela substituição do isolamento do ser, a substituição de sua descontinuidade por um sentimento de continuidade profunda. O erotismo dissimula a descontinuidade individual e será sempre violência, pois arrancar o ser da descontinuidade é um ato violento comparável com a morte que nos tira da nossa persistência em conservar o ser descontínuo que somos. Ao mesmo tempo em que buscamos a experiência da continuidade, a tememos, por ela simbolizar a morte. Tememos o aniquilamento da individualidade descontínua, pois a realização erótica visa a destruição.
O erotismo dos corações sempre tem origem no dos corpos, mas difere dele por alcançar uma estabilidade proveniente da afeição entre os amantes. Aqui também há violência, pois a paixão pode ser mais brutal do que o simples desejo, fazendo com que a felicidade anunciada seja facilmente perdida e a vida se transforme em não-presente, prisão. Trata-se da relação entre dois seres descontínuos que anseiam uma continuidade impossível, despertando desejos de morte quando da constatação dessa impossibilidade.
A transcendência do ser pode ser alcançada através da terceira forma de erotismo, o sagrado, e em torno disso gira História do Olho. Nesse caso a ação erótica é comparável ao sacrifício religioso: a morte ritualística quebra a descontinuidade por meio do retorno ao divino. A continuidade do ser não é conhecível, mas sua experiência é dada através da experiência mística. Para Bataille, esse erotismo representa um tipo de religião sem dogmas: uma experiência erótica interior verdadeira criando consciência, retorno à natureza.
por Enzo Potel
Blog Orgia Literária http://www.orgialiteraria.com/
História do Olho
Georges Bataille
trad. Eliane Robert Moraes
Cosacnaify
2008
Nenhum comentário:
Postar um comentário