sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Primitivos?

O termo implica uma idéia de início. Ele se refere a pessoas que vivem como o faziam no início da história humana? Uma hipótese sedutora, mas que leva a sérios mal-entendidos, diz Lévi-Strauss, explicando neste artigo do Correio de maio de 1951 porque a noção de sociedade primitiva é uma ilusão.





Houve um tempo em que, se você falasse dos selvagens, todos tinham uma idéia clara do que você estava falando. Etimologicamente, o selvagem era um homem da floresta e o termo denotava aquelas pessoas que viviam em contato com a natureza. A palavra alemã naturvölker (pessoa da natureza) transmitia essa idéia diretamente.

Mas além do fato de que nem todos os selvagens vivem necessariamente nas florestas (pense nos esquimós), a palavra logo adquiriu um significado figurado que rapidamente se tornou derrogatório. Além disso, a idéia de se viver em contato com a natureza é ambígua; os fazendeiros vivem muito mais próximos à natureza do que cidadãos da cidade e nem por isso deixam de pertencer à mesma civilização.

Os cientistas perceberam que não se pode classificar os povos de acordo com o quão perto ou distantes eles estão da natureza. Na realidade, o que distingue a humanidade dos animais é que o homem, com o seu uso universal da linguagem, seus utensílios e ferramentas fabricados, sua submissão a esses costumes, crenças e instituições, pertence a uma ordem superior a qualquer outro ser vivo na natureza. O mundo do homem é o mundo da cultura que está rigorosa e inequivocamente oposto à natureza, qualquer que seja o nível de civilização. Todos os seres humanos falam, fazem utensílios e se comportam de acordo com regras estabelecidas, estejam eles vivendo em arranha-céus ou em uma cabana no meio da floresta. E são essas coisas que os tornam seres humanos, não o material particular com o qual eles constroem suas casas.

A antropologia moderna prefere, portanto, usar a palavra "primitivo" para designar os povos que costumavam ser chamados de "selvagens". Há um enorme número de sociedades primitivas – vários milhares, de acordo com a estimativa mais recente. Mas o problema começa quando se tenta descrever as características dessas sociedades.

Que denominador comum?




Primeiramente podemos descontar o fator dos números, que corresponde ao tamanho da sociedade. É claro que tamanho tem significado do ponto de vista global, uma vez que sociedades envolvendo vários milhões de membros aparecem apenas raramente na história da humanidade e são encontradas apenas em algumas poucas grandes civilizações. Adicionalmente, essas civilizações apareceram em diferentes épocas históricas e em regiões tão distantes uma das outras como o Oriente e o Extremo Oriente, a Europa, a América Central e a América do Sul.

No entanto, abaixo desse nível existem diferenças tão grandes que o fator-número ou tamanho acabam não tendo qualquer valor absoluto. Alguns reinos africanos tinham várias centenas de milhares de membros, as tribos da Oceania tinham vários milhares, mas em uma mesma região do mundo encontramos sociedades compostas por apenas algumas centenas de pessoas ou até mesmo algumas poucas dúzias.

Além disso, esses povos (por exemplo, os esquimós e algumas tribos australianas) estão frequentemente organizados de uma maneira extraordinariamente flexível: um grupo é capaz de se expandir durante ocasiões festivas ou durante certos períodos do ano, de modo a incluir milhares de pessoas, enquanto em outras estações ele se divide em pequenos bandos auto-suficientes, compostos por algumas famílias ou até mesmo de uma única família. Obviamente, se uma sociedade que consiste em 40 membros e outra em 40 mil podem ser chamadas de primitivas pela mesma razão, o fator numérico, por si só, não oferece uma boa explicação.

Culturas existentes fora da civilização industrial




É possível que pisemos em terreno mais firme se levamos em consideração outra característica, sem dúvida presente em todas as culturas que chamamos de primitivas: cada uma delas está, ou pelo menos esteve até bem recentemente, fora do escopo da civilização industrial. Mas também aí, o critério não funcionará.

Considere o caso da Europa Ocidental. Tem-se dito frequentemente, e com razão, que o modo de vida dos europeus ocidentais quase não mudou do início dos tempos históricos até a invenção do motor a vapor; não havia qualquer diferença fundamental entre o estilo de vida de um patrício do Império Romano e a vida de um burguês francês, inglês ou holandês do século XVIII.

Adicionalmente, nem Roma no século II a.C nem Amsterdã em 1750 são comparáveis a uma vila da Melanésia hoje ou a Timbuktu em meados do século XIX. As civilizações que precederam o nascimento da civilização industrial não devem ser confundidas com aquelas que existiram fora dela, e poderiam permanecer fora dela por um longo tempo se a industrialização não lhes tivesse sido imposta.

O fato é que, quando falamos de povos primitivos, devemos ter em mente o fator história (ou tempo). A própria palavra ‘primitivo’ implica a idéia de começo. Então podemos dizer que os povos primitivos são aqueles que retiveram ou preservaram até o momento o modo de vida que data do início da sociedade humana? Essa é uma hipótese sedutora que é válida dentro de certos limites. Mas que também é capaz de causar uma grande confusão.


"Todas as sociedades – desde o poderoso império dos incas […] até os pequenos bandos nômades de coletores de plantas na Austrália – são comparáveis em pelo menos um aspecto: eles não conheciam ou ainda não conhecem a escrita. […] Embora essas sociedades não sejam, estritamente falando, mais “primitivas” que a nossa, seu passado é de um tipo diferente. […] Foi um passado fluido que pôde ser apenas preservado em pequenas quantidades e o resto que existiu foi condenado ao esquecimento sem qualquer esperança de recuperação."
Primeiramente, não sabemos nada do início da humanidade. Os primeiros traços já descobertos – armas e implementos em pedra e há alguns milhares de séculos – certamente não foram os primeiros produtos de cérebro humano. Mas eles já revelam habilidades técnicas complicadas que provavelmente foram desenvolvidas pouco a pouco. Acima de tudo, foi constatado que essas técnicas eram as mesmas em uma vasta área da superfície da terra, sugerindo, portanto, que elas tiveram tempo para se espalhar, influenciar umas às outras e para se tornarem homogêneas.

Em segundo lugar, os povos aos quais chamamos primitivos são todos – ou quase todos - familiarizados com pelo menos algumas das artes e técnicas que apareceram bem mais tarde no desenvolvimento da civilização. Embora os mais antigos implementos de pedra lascada datem de 400 mil a 500 mil anos atrás, a agricultura, pecuária, tecelagem e cerâmica apareceram há apenas 10 mil anos, talvez até menos. Portanto, a “primitividade” dos povos que cultivavam jardins, criavam porcos, teciam o algodão e faziam potes é relativa na linha do tempo da história da humanidade.

Mas podemos fazer outra pergunta: afinal de contas, pelo menos alguns desses povos não continuam a seguir um modo de vida que é bem mais antigo que o nosso, mais parecido com o do homem dos primeiros tempos? Alguns exemplos logo vêm à mente: os aborígenes da Austrália ou da América do Sul. Eles levam uma vida nômade em regiões semi-áridas, vivem da caça ou da coleta da terra do que quer que possam comer. Desconhecem a tecelagem ou a cerâmica e até bem recentemente usavam instrumentos de pedra. Os nativos da Austrália desconheciam até mesmo o arco e flecha, enquanto aqueles da Terra do Fogo tinham apenas um tipo bem rudimentar.

Povos sem história?



Todavia, o progresso do conhecimento etnológico fornece uma explicação. Tem-se mostrado que o estado aparentemente primitivo não é o resultado de nenhuma preservação milagrosa de um modo antigo de vida. Ele é o efeito da regressão. Os Australianos só podem ter alcançado seu continente de barco, de modo que em algum momento eles devem ter conhecido a arte da navegação, mas desde então a esqueceram. Uma mudança para uma área sem argila de boa qualidade freqüentemente explica o desaparecimento da cerâmica, até mesmo da mente humana. A língua prova que os povos, cujo baixo nível de civilização pode sugerir sua imobilização e isolamento no mesmo lugar por muito tempo, na realidade estiveram em contato com populações mais desenvolvidas por milhares de anos. Muito longe desses povos supostamente primitivos não terem história, é justamente a história deles que explica as condições especiais nas quais eles foram encontrados.

Sendo assim, seria absurdo pensar que é porque não sabemos nada ou quase nada de seu passado que os povos primitivos não têm história. Seus mais remotos ancestrais apareceram na Terra ao mesmo tempo que os nossos. Por dezenas ou centenas de milhares de anos, outras sociedades precederam as deles e ao longo do tempo viveram, permaneceram e, portanto, se modificaram, como a nossa o fez. Elas conheceram guerras, migrações, períodos de carência e prosperidade. Eles tiveram grandes homens que deixaram sua marca no conhecimento técnico, na arte, na moral e na religião. Todo esse passado existe. Eles simplesmente sabem pouco a respeito dele e nós não sabemos nada.

A presença latente e a pressão de um passado que desapareceram são suficientes para mostrar a falsidade da palavra ‘primitivo’ e até mesmo da idéia sobre os povos primitivos. Mas, ao mesmo tempo, devemos notar uma característica que todas aquelas sociedades têm em comum e que as distingue da nossa. É a razão para aplicarmos a elas o mesmo termo, mesmo que ele seja inapropriado.

Primitivo: um termo enganador




Todas as sociedades – desde o poderoso império dos incas , que tiveram êxito em organizar vários milhões de homens em um sistema político-econômico de excepcional eficiência, até os pequenos bandos nômades de coletores de plantas na Austrália – são comparáveis em pelo menos um aspecto: eles não conheciam ou ainda não conhecem a escrita.

Eles não puderam preservar seu passado exceto pelo que a memória humana foi capaz de reter. Isso permanece verdadeiro mesmo para os grupos pequenos que desenvolveram, na ausência da escrita, alguns sistemas de mnemônica (tais quais as cordas peruanas com nós ou os símbolos gráficos da Ilha de Páscoa e de certas tribos africanas). Embora essas sociedades não sejam, estritamente falando, mais “primitivas” que a nossa, seu passado é de um tipo diferente. Não foi um passado preservado por escrito e portanto disponível a qualquer momento para ser usado em benefício do presente.

Foi um passado fluido que pôde ser preservado apenas em pequenas quantidades e o resto que existiu foi condenado ao esquecimento sem qualquer esperança de recuperação.

Para utilizar uma expressão da linguagem da navegação, as sociedades que possuem algum tipo de escrita têm um meio de registrar seu trajeto e, portanto, manter-se na mesma rota por um longo período. Por outro lado, as sociedades despossuídas de alguma forma de escrita estão limitadas a seguir uma rota instável, o que pode ao fim (embora a distância navegada possa ser a mesma em ambos os casos) trazê-las de volta ao seu ponto de partida. Ou, pelo menos, a ausência da escrita as priva dos meios para saírem de suas rotas, ou seja, realizarem progresso.

Portanto, nunca é demais enfatizar que os leitores – e até mesmo os cientistas – devem estar conscientes do uso ambíguo de termos como ‘selvagem’, ‘primitivo’ ou ‘arcaico’. Pela adoção da presença ou ausência da escrita como o único critério no estudo de nossas sociedades, devemos, primeiramente, invocar uma qualidade objetiva que não envolve postulados filosóficos ou morais. E, ao mesmo tempo, devemos depender de uma única característica capaz de explicar a real diferença que distingue certas sociedades da nossa.

A idéia de uma sociedade primitiva é uma ilusão. Por outro lado, a idéia de uma sociedade sem nenhuma forma de escrita nos torna conscientes do lado essencial do desenvolvimento da humanidade, ela explica a história e nos torna capazes de prever e talvez influenciar o futuro desses povos.

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