sexta-feira, 30 de outubro de 2009

A beleza do cisne

A arte se inspira na perfeição do céu e da terra; a cultura, na perfeição da natureza. Esta idéia constitui o cerne da conferência “Retorno à natureza, retorno às origens” que o calígrafo e poeta chinês Fan Zeng apresentou na UNESCO, no último mês de maio, no âmbito do Festival Internacional da Diversidade Cultural.



Um pintor letrado
Mestre Fan Zeng, recentemente nomeado conselheiro da UNESCO para Diversidade Cultural, segue a tradição da "pintura dos letrados", corrente artística que se desenvolveu na China a partir do século X. Mais
A natureza é mais que generosa para com a humanidade. Além de dotá-la de elementos necessários para sua existência – ar, água e terra –, ela forneceu-lhe reguladores como a alternância do sol e da lua e a passagem benfazeja do vento e da chuva, permitindo, assim, que os seres vivos se desenvolvam indefinidamente desde a aurora dos tempos.

À bondade, a humanidade, impaciente, respondeu com hostilidade. No século passado, um biólogo proferiu uma palavra de ordem terrível: “Em vez de ficarmos na expectativa de seus benefícios, devemos exigi-los da natureza!” Como se fosse um filho malcriado ao levantar a mão contra a mãe benevolente; como se fosse um crocodilo, com as mandíbulas completamente abertas, feroz e selvagem, ao ignorar os limites daquilo que a Terra é capaz de nos prodigalizar.

Há mais de 2.500 anos, o grande filósofo chinês, Lao Zi, classificava os componentes do universo em cinco categorias: em primeiro lugar, o visível, o audível e o tangível; em seguida, o invisível, a existência perfeita chamada dao, uma espécie de Lei Celestial, comparável à Idéia de Platão, ao Espírito de Hegel ou ao Princípio da Finalidade de Kant; e por último, além do dao, a natureza, a “perfeita existência em si, espontaneamente e desde sempre assim”.

No budismo, a noção de “em si” exprime a conformidade absoluta com a razão de ser das coisas, a concordância, a pertinência – outros tantos atributos da natureza. Sinal incorruptível da imensidade do tempo e do espaço, essa existência em si perdura de forma onipresente, ilimitada. Dez bilhões de anos-luz não seriam capazes de circunscrevê-la, dez bilhões de anos não seriam suficientes para dar testemunho de sua duração.

De acordo com Dirac, a mais sofisticada matemática seria a única disciplina com condições de descrevê-la. Há 200 anos, Kant atribuía um lugar de exceção à matemática em seu livro Crítica da razão pura, que antecipava, poderíamos dizer, a inevitável supremacia do sistema digital que, progressivamente, se foi instaurando.

Entretanto, a natureza diferencia-se da racional – e um tanto árida – lógica digital. Ela oferece à humanidade a plenitude do amor e da ternura, inerente à beleza do céu e da terra. Lembremo-nos do ensino de Zhuang Zhou – um pensador ímpar, dotado de uma sabedoria divina, comparável a Palas Atena –, que viveu na China, há 2.300 anos, durante o período designado como “Primaveras e Outonos”. Ele afirmava: “A beleza do céu e da terra é perfeita e silenciosa; as quatro estações alternam segundo um ritmo regular, sem prescrições; os 10 mil seres atingem seu perfeito desenvolvimento em conformidade com a razão de ser das coisas, tacitamente.”

Essa existência em si, isenta de qualquer forma de logos, encarna a excelência do céu e da terra que incentiva intensamente a criatividade da alma humana e acolhe generosamente a pluralidade das inteligências e dos talentos humanos. E as sementes dessa beleza perfeita, disseminadas através do planeta, se transformam em virtudes de sinceridade e verdade, assim como em expressões estéticas. Entre os direitos inatos do homem, existe, sem dúvida, o “direito à experiência estética”, mesmo que ele não conste nos textos legislativos (talvez, por ser considerado como implícito). A perfeição do céu e da terra, desde a antiguidade até nossos dias, constituiu a fonte livre e inexaurível da beleza e da diversidade das culturas de nosso mundo.

Superar a natureza: vaidade




No Zhuangzi, Zhuang Zhou descreve um povo chamado Hexu que, na alta antiguidade, vivia displicentemente, comia bastante e perambulava ociosamente, com o ventre empanturrado, na companhia de animais e de plantas. Eis o que é compartilhado pelo nosso imaginário: de Platão a Owen, passando por Tomás Morus, Saint-Simon e Fourier, os homens têm alimentado sempre sonhos maravilhosos; caso contrário, a humanidade seria totalmente diferente do que ela é. Se tivéssemos de renunciar a nossos sonhos, nada sobraria além de esterilidade e tédio; além disso, nossa vida inteira estaria focalizada na morte. Triste sorte.

Vocês não crêem que a UNESCO preconiza a diversidade cultural precisamente para abrir o caminho à inevitável grande concórdia universal? Desta forma, essa cultura, formada por múltiplos aportes fascinantes, poderá conservar sua total beleza durante milhões de anos.

“Retorno às origens” e “retorno à natureza” são duas expressões da mesma idéia. A cultura inspirou-se incessantemente na natureza: por mais que as artes e as letras tenham tentado imitá-la, por mais descobertas que as ciências tenham feito, querer superar a natureza é pura vaidade. Ficamos devendo a uma equação de Maxwell, no século XIX, o progresso tecnológico que vai do simples micro à indústria aeroespacial. No entanto, nada foi inventado por esse cientista: antes dele, antes mesmo da existência da terra, essa equação já estava inscrita, em qualquer parte, no universo.

É costume afirmar que as artes e as letras são dotadas de um poder divino: afinal, não passam de manifestações de artistas à procura de consolo. Na realidade, apesar do recurso ao exagero artístico, a humanidade é incapaz de se aplicar a tarefas que não estejam à altura de suas forças, ao passo que o menor movimento do universo, de uma potência majestosa, é suficiente para abalar o planeta. Os ciclones e os maremotos são apenas um antegosto da força da natureza; e quando a magnificência se transforma em terror, a humanidade fica reduzida a uma ínfima entidade. Kant coloca-nos de sobreaviso: afastem-se um pouco e o terrificante poder da natureza tornar-se-á objeto de prazer estético. Mas, não carecemos forçosamente desse terrificante poder da natureza para experimentar um prazer estético: a prova é este Dia da Diversidade Cultural.

A avidez devora a alma



Em eras mais recuadas, na Antiguidade e nas épocas clássicas, a humanidade vivia principalmente da agricultura e da criação de gado, confiando na natureza e adaptando-se a seus ritmos. O homem dava-lhe testemunho de respeito e de afeição, sem a menor manifestação de arrogância para com ela. A industrialização, porém, exacerbou seus desejos e, na era da pós-industrialização, a avidez está em via de devorar sua alma.

No início do século XX, Toynbee e Spengler, na Inglaterra e na Alemanha, respectivamente, chamaram nossa atenção para os riscos da síndrome do capital que, infelizmente, se confirmaram hoje, do mesmo modo que a perspicácia desses dois eminentes pensadores: no momento em que o progresso das novas tecnologias é acompanhado por um consumo desmesurado, a subsistência de nosso planeta encontra-se sob uma ameaça que não para de se agravar.

Nosso apego às culturas originais tem a ver com sua sabedoria, elegância, autenticidade e simplicidade. Elas são a expressão da pureza de alma de nossos antepassados. Certamente, mais tarde, elas foram salpicadas pelo colorido do sagrado, mas na medida em que a religião cumpre sua missão de conforto da alma humana, ela pode fundamentalmente ser considerada como uma arte.

As culturas não obedecem aos princípios da evolução de um Darwin ou de um Spencer: uma obra recente não é superior a uma obra anterior. As tomadas de consciência e os esforços em favor da confiança e da concórdia, enfatizados pela humanidade inteira neste dia de intercâmbio pluricultural, permanecerão para sempre uma luz emocionante e incentivadora.

“Em qualquer sociedade, seja de animais ou de homens, a violência produziu os tiranos, enquanto a autoridade branda faz os reis: o leão e o tigre, na terra, a águia e o abutre, nos ares, não conseguem reinar a não ser pela guerra, e seu domínio só é obtido pelo abuso da força e pela crueldade. Em vez disso, o cisne reina nas águas por meio de qualidades que são o próprio fundamento de um império da paz: grandeza, majestade, ternura […]” (Buffon, História natural das aves, tomo IX, “O Cisne”)

Rezemos juntos pela paz e pela grande concórdia da humanidade; façamos votos para que a nobre beleza do cisne seja conservada para sempre.

Fan Zeng, poeta e pintor, é um dos mais célebres calígrafos chineses vivos. Ele publicou, em francês, O velho sábio e a criança (2005).

Nomes citados, na ordem de sua aparição:
Lao Zi, filósofo chinês (provavelmente, 604-479 a.C.)
Zhuang Zhou, filósofo taoísta (séc. IV a.C.)
Platão, filósofo grego (séc. V - IV a.C.)
Georg Wilhelm Friedrich Hegel, filósofo alemão (1770-1831)
Emmanuel Kant, filósofo alemão (1724-1804)
Paul Dirac, físico e matemático britânico (1902-1984)
“Primaveras e Outonos”, período da história chinesa, compreendido entre o séc. VIII e V a.C.
Palas Atena, deusa grega da sabedoria
Gwilym Ellis Lane Owen, filósofo britânico (1922-1982)
Tomas Morus, jurista, historiador, filósofo, teólogo e político inglês (1478-1535)
Claude-Henri de Rouvroy, conde de Saint-Simon, economista e filósofo francês (1760-1825)
Charles Fourier, filósofo e economista francês, inspirador dos falanstérios (1772-1837)
James Clerk Maxwell, físico e matemático escocês (1831-1879)
Arnold Joseph Toynbee, historiador britânico (1889-1975)
Oswald Spengler, filósofo alemão (1880-1936)
Charles Robert Darwin, naturalista inglês (1809-1882)
Herbert Spencer, filósofo e sociólogo inglês (1820-1903)
Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon, naturalista francês (1707-1788)

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